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Tiramos uma folga para coincidir com as férias das crianças, depois fazemos outra pausa para acompanhar madrugadas olímpicas (que renderam uma coluna no UmDois Esportes, site de noticiário esportivo mantido pela Gazeta do Povo e pela Tribuna do Paraná), e quando voltamos o assunto é...? Vacinas contra a Covid-19 e a resposta do clero católico. Ou seja, quase nada mudou em mais de um mês.
Leio no Crux que os bispos norte-americanos estão divididos (o que não surpreende em nada, já que até sobre algo óbvio como negar comunhão a político abortista eles se dividem) sobre o apoio à objeção de consciência dos católicos. Acontece que, nos Estados Unidos, as tais “restrições civis” aos não vacinados estão crescendo, o que na prática equivale a uma imposição da vacinação obrigatória. Como ficam aqueles que não querem receber vacinas que usaram linhagens celulares oriundas de fetos abortados em sua produção ou testes?
Se os fiéis têm direito à objeção de consciência, parece bem óbvio que os pastores têm o dever de protegê-la
Os bispos do Colorado tomaram o lado desses fiéis. A cidade de Denver determinou que vários grupos de cidadãos, incluindo funcionários públicos e profissionais da educação, estejam vacinados até o fim de setembro, mas admite exceções para a objeção de consciência por razões religiosas (o que é um enorme avanço, pois duvido que os Barrosos da vida aceitassem algo assim por aqui). Os bispos das três dioceses do estado (a arquidiocese de Denver e as dioceses de Colorado Springs e Pueblo), então, escreveram uma nota criticando as restrições como violações das liberdades de consciência e expressão e chegaram até a montar uma carta padronizada que os católicos podem levar a seus párocos, para que a assinem.
Stephen Berg, bispo de Pueblo, disse ao Crux que nem ele, nem os demais bispos estão dizendo aos católicos que não se vacinem – pelo contrário, eles estão incentivando os fiéis a se imunizar. Mas o bispo afirma que a consciência individual precisa ser protegida, e também é dever dos bispos estar ao lado dos fiéis que optarem por não se vacinar para não se beneficiar do resultado de um aborto. Nas duas dioceses do estado da Dakota do Sul, Sioux Falls e Rapid City, os bispos adotaram a mesma postura.
Enquanto isso, na arquidiocese de Nova York, os padres foram aconselhados pelo vigário-geral, monsenhor Joseph LaMorte (que nome!), e pelo chanceler arquidiocesano, John Cahill, a não assinarem nenhum documento reconhecendo a objeção de consciência de um fiel que não queira receber vacinas ligadas ao uso de material biológico ilícito, porque isso seria “contradizer as diretrizes do papa”. O memorando ainda diz que “não há base para um padre emitir um certificado isentando fiéis da obrigação se de vacinar”. As dioceses do Brooklyn e de San Diego fizeram o mesmo. O vigário-geral da diocese do Brooklyn afirmou que não deve haver salvaguardas para católicos objetores de consciência porque “o Vaticano determinou que as vacinas contra a Covid-19 são moralmente aceitáveis”, o que é uma simplificação grosseira da avaliação da Igreja sobre o tema.
A diocese de El Paso, no Texas, foi ainda mais longe e impôs ela mesma uma ordem para que todos os funcionários da diocese se vacinem. O bispo Mark Seitz afirmou o seguinte: “People are welcome to choose not to get the vaccine for the reason that they feel they need to make a heroic stand to call attention to the fact that some means that we in the church did not consider moral were used in the testing of the vaccines, and in the case of Johnson and Johnson in the development (...) But when a person takes a heroic stand there are also consequences to that stand based on the situation”. Se você jogar isso no Google Translate, o que vem é isso aqui: “Se você quer bancar o herói e usar um direito que a Igreja lhe garante, então banque. Mas não queremos saber de você trabalhando para nós”.
Mas quais são mesmo as “diretrizes do papa”? Elas estão na Nota sobre a moralidade do uso de algumas vacinas anticovid-19, da Congregação para a Doutrina da Fé, que afirma, entre outras coisas, que “Para a razão prática parece evidente que, em geral, a vacinação não é uma obrigação moral e, por conseguinte, deve ser voluntária”, e que “quantos por motivos de consciência rejeitam as vacinas produzidas com linhas celulares derivadas de fetos abortados devem esforçar-se para evitar, com outros meios profiláticos e comportamentos idôneos, de se tornar veículos de transmissão do agente contagioso”. Ora, a mera menção a objetores de consciência deixa implícito que esta é uma possibilidade lícita. E, se ainda houver alguma dúvida, o parecer de 2005 da Pontifícia Academia para a Vida, citado como referência na nota, é ainda mais direto ao afirmar que a objeção de consciência, em alguns casos, seria até mesmo um dever do católico – só lembrando que, no caso da Covid, a Igreja diz claramente que é lícito tomar qualquer imunizante caso não haja uma vacina eticamente produzida. Até o momento, é o caso dos Estados Unidos, e também do Brasil.
Se os fiéis têm direito à objeção de consciência, parece bem óbvio que os pastores têm o dever de protegê-la. E então qualquer um pode concluir quem está mais próximo de seguir “as diretrizes do papa”, se os bispos do Colorado e da Dakota do Sul, ou a arquidiocese de Nova York e as dioceses do Brooklyn, San Diego e El Paso.
À medida que a pandemia foi se espalhando, e bispos e padres em todo o mundo começaram a restringir o acesso aos sacramentos, foi inevitável que muitos católicos se sentissem abandonados pelos seus pastores. Se esse sentimento era justificado ou não, pouco importa aqui – tenho para mim que na maioria dos casos essa percepção era injusta com os pastores, mas também vi alguns absurdos aqui e acolá. Recusar uma vacina que tem relação (mesmo remota) com um aborto é um direito garantido ao católico. Se um bispo ou padre se recusa a defender esse direito, muito mais razão terá o fiel ao se sentir abandonado, especialmente se essa desproteção o deixar sujeito a represálias do poder estatal. Numa situação dessas, é preciso ter muita fé na Igreja, apesar dos seus líderes, para não desanimar de vez.