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Bola cheia, bola murcha, bola fora…
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Mike Rozulek

Eu tenho grande apreço por cientistas que se dispõem a explicar ao leitor comum assuntos às vezes muito complicados. Melhor ainda quando o fazem com um texto elegante e gostoso de ler, como no caso do neurologista Oliver Sacks. Entre os brasileiros, o time ainda é pequeno; acho que o maior craque no elenco seria Marcelo Gleiser. Agora, o biólogo Sandro de Souza quer um vaguinha no elenco, e por isso lançou A goleada de Darwin (Record, 221 p. O meu exemplar é cortesia da editora, e o preço mais em conta é o da Fnac), com o objetivo de explicar a teoria da evolução e a controvérsia com o criacionismo. Pelo título do livro, vocês já entenderam por que essa resenha começou com metáforas futebolísticas, que o autor, são-paulino (gosto não se discute, só se lamenta), também emprega em sua obra. Minha opinião é a de que ele passou pela peneira, mas não sei se tem bola suficiente para sair jogando como titular. E é com a resenha desse livro que encerramos o especial Darwin do Tubo de Ensaio.

Primeiro, vamos aos pontos fortes do livro: os três capítulos dedicados a narrar os “gols de Darwin” explicam direitinho a quem não é familiarizado os conceitos de seleção natural, de ascendência comum, como a genética se relaciona com a teoria da evolução, o que o registro fóssil mostra sobre as espécies que já se foram e sua ligação com as atuais. Os biólogos saberão me dizer se nesse ponto Sandro joga como a Holanda de 74 ou o Brasil de 82, de forma genial, ou se está mais para a Alemanha de 90 e o Brasil de 94, sem brilhantismo, mas com eficiência. Eu, pelo menos, me dei por satisfeito, e o uso de infografias ajuda a compreender melhor os mecanismos evolutivos. Ou seja, para quem quer saber o que é a evolução e como ela funciona, o livro é bom, vale o ingresso.

Divulgação
“A goleada de Darwin” alterna lampejos dignos de Garrincha com alguns momentos Júnior Baiano.

O problema é que, antes de chegar aos capítulos 3, 4 e 5, a torcida e os comentaristas já tinham motivos para se impacientar um pouco com Sandro. Afinal, se quando fala estritamente de ciência o autor manda bem, na hora de colocar a religião no assunto o meio de campo desanda. No capítulo 2, por exemplo, o autor dá a escalação do time criacionista: criacionistas de Terra plana, de Terra jovem, de Terra antiga, pessoal do Design Inteligente… e por último vem uma tal “evolução teística”: pessoas que aceitam a evolução, mas mantêm Deus como agente causal. Esperem um pouco: colocar essa turma no time dos criacionistas é querer escalar jogador com documentação irregular, porque não tem nada de criacionismo nessa “evolução teística”. A não ser que o autor tenha alargado demais o conceito de “criacionismo” a ponto de englobar nele todo mundo que acredite num Deus criador – o problema é que isso não tem respaldo na bibliografia sobre evolução e criacionismo. É mais ou menos como querer convocar o Lugano para a seleção brasileira porque um dia o Uruguai fez parte do território do Brasil. E Sandro insiste na bola fora na página 131: “A grande maioria dos criacionistas, mesmo aqueles que acreditam na evolução e tentam conciliar a fé com a ciência, ainda postula um tratamento diferente para a espécie humana.”

Mas tem coisa pior. O autor cita na página 22 o biólogo Ernst Mayr, segundo o qual “Darwin desafiou com A origem das espécies os quatro pilares do dogma cristão, a saber:” Antes de continuar, devo dizer ao autor (porque ao Mayr não dá mais, ele morreu em 2005) que os pilares do dogma cristão não têm nada a ver com os quatro itens que serão enumerados abaixo. Mas continuemos, Mayr em itálico e depois meus comentários:

Daniel Castellano/Gazeta do Povo
Pois é, amiga torcedora, esse Mayr pisou na bola…

1. A crença em um mundo constante: acreditava-se em 1859 que o mundo refletia o planeta Terra da época da criação. Bom, em 1859 a interpretação corrente do texto bíblico via o relato da criação como alegoria. Como já tivemos a oportunidade de mostrar aqui ao longo da semana, o literalismo total em relação a Gênesis 1 e 2 é um fenômeno do século 20.

2. A crença em um criador: era praticamente consensual a crença na existência de um criador, cuja ação gerava tanto o mundo físico como o natural. As espécies sob essa ótica eram imutáveis e foram criadas pelo criador. Onde raios a evolução desmente a crença em um criador? Se o próprio Darwin dizia o contrário… a evolução traz uma nova compreensão sobre os mecanismos da criação, mas nunca se propôs a derrubar a própria noção de criação.

3. A crença de que haveria propósito tanto no mundo físico quanto no natural. A evolução, como teoria científica, não faz esse tipo de afirmação metafísica. A existência ou não de propósito no mundo está fora do alcance da ciência. Há evolucionistas que dizer haver propósito (como vimos o Giberson falando), e outros para quem só existe o acaso cego (como os ateus militantes). Mas nenhuma das duas afirmações é científica, e sim filosófica.

4. A crença em uma posição diferenciada do homem entre os organismos vivos. Se Mayr soubesse que a “imagem e semelhança” vêm de atributos espirituais, e não físicos, veria que a evolução não tira esse status especial do ser humano.

E, por essa coleção de jogadas, Ernst Mayr é o bola murcha dessa semana.

Também dei pela falta de The Genesis flood quando Sandro contou a história do criacionismo. Henry Morris é até citado no livro, mas sua obra não. E foi justamente ela que botou fogo na partida, lá na década de 60. E não julgo que o Design Inteligente seja um “gol impedido de Deus“, pois está mais para gol impedido de gente que acha que pode contar com Deus no seu time…

Eu ainda cito como melhores momentos o capítulo 8, que descreve o movimento criacionista no Brasil; e o capítulo final, em que o autor defende a possibilidade de ser “devoto” e “darwinista” ao mesmo tempo (eu concordo, mas então que tal tirar os “teístas evolucionistas” do time criacionista?). E, como lance de efeito – daqueles que deixam a gente meio impressionado, mas não servem pra nada –, a frase idiota do Carlos Minc, na época deputado e hoje ministro, para quem o ensino do criacionismo “é o caminho de volta à Idade Média, com o risco de se incentivar as crianças a queimar os livros de Darwin” (p. 156). Se o Minc soubesse que na Idade Média não existia criacionismo, e que foi justamente nessa época em que se lançaram as bases da revolução científica…

O meu exemplar do livro é da primeira edição (apesar de só estar sendo resenhado agora, recebi logo após o lançamento); merecia uma revisão mais cuidadosa, pois tem vários nomes grafados incorretamente, como os do professor John Scopes (“Scope”), do ator Spencer Tracy (“Track”), do biólogo Kenneth Miller (“Keneth Muller”, inclusive na bibliografia), do filósofo William Dembski (“Dembsky”) e do senador Rick Santorum (“Rich”). Espero que tenham sido corrigidos nas edições seguintes; falhas no gramado podem até não atrapalhar o jogo, mas deixam uma impressão ruim. Além disso, e talvez mais importante que a questão dos nomes, tenho a sensação de que, na maioria das vezes em que se empregou no livro o termo “descendência”, na verdade o que se queria dizer era “ascendência”; afinal, o macaco e o homem têm ascendência, e não descendência comum. É uma tremenda diferença.

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Então, caros leitores, o especial Darwin termina hoje. Espero sinceramente que tenha agradado e que as pessoas que descobriram o Tubo de Ensaio ao longo dessa semana continuem acompanhando o blog e participando das discussões na caixa de comentários. Depois desse pequeno tour de force, o ritmo de atualizações volta ao normal, duas ou três por semana.

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Não é porque o especial Darwin acabou que você vai parar de seguir o Tubo de Ensaio no Twitter, certo? Aliás, hoje é dia de #FF!

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