Anteontem, afirmei que ficaria de olho na internet para ver que tipo de repercussão o anúncio da descoberta do bóson de Higgs teria entre os que dedicam a estudar a relação entre ciência e fé. Para ser honesto, não veio muita coisa até agora. Não encontrei nada, por exemplo, vindo de John Polkinghorne, que é físico.
No blog Gleanings, da revista Christianity Today, Sarah Bailey aborda mais a questão do apelido que a descoberta em si. Ela entrevistou alguns cientistas, que afirmaram detestar o termo “partícula de Deus”, ainda que em público não sejam tão enfáticos a respeito disso, até porque, queiram ou não, o apelido popularizou a busca pelo bóson a ponto de muito mais pessoas estarem informadas a respeito dele do que ocorreria em outras circunstâncias, e tudo que ajude a popularizar a ciência é bem-vindo.
Mas o autor anônimo de um texto publicado no site uCatholic.com é mais crítico em relação ao termo “partícula de Deus”. Para ele, trata-se de um “sensacionalismo que presta um desserviço tanto a esses brilhantes físicos quanto aos crentes”. Eu tenho lá minhas dúvidas quanto a isso. O autor fala de ateus militantes trombeteando por aí que a descoberta derruba a noção judaico-cristã da divindade, ou mostra que Deus não tem nada a ver com a criação. É verdade que isso ocorreu, basta ir ao Facebook. Mas isso não é culpa do apelido; esse tipo de ignorância apareceria ainda que o bóson de Higgs tivesse apenas um nome insosso.
O autor do texto lembra que o bóson não tem absolutamente nada a ver com a existência ou inexistência de Deus, e é verdade; que os cientistas não gostam do apelido (o que só reforça o post de Sarah Bailey); e que, para os católicos, fé e razão andam sempre juntas. Tudo isso é correto, mas acho que o autor está fazendo meio que tempestade em copo d’água com a questão do apelido, como se ele realmente carregasse um conteúdo teológico em vez de ser o que realmente é, um belo golpe de marketing (o frade Guy Consolmagno, do Observatório Vaticano, captou melhor o espírito da coisa). De qualquer maneira, o fim do texto é digno de menção: “Por uma perspectiva religiosa, sua descoberta [do bóson] nos permite conhecer mais sobre a fecundidade e a mente criativa de Deus. Então, quando você ouvir o termo ‘partícula de Deus’, não pense que ela tem qualquer implicação religiosa sobre a existência de Deus.”
No Huffington Post, Philip Clayton comentou como é que, das primeiras reações puramente científicas à descoberta, a coisa degringolou para o uso ideológico do anúncio da existência do bóson de Higgs. O texto é bem interessante, tem até um passo a passo de como a confusão se instala. O problema não são os cientistas do Cern, afirma Clayton; o problema são os defensores e os detratores da religião, que pensam poder usar o anúncio de quarta-feira para seus próprios propósitos, acrescenta.
Um desses “encrenqueiros” é Peter Atkins, que na BBC afirmou que “o bóson de Higgs é outro prego no caixão da religião” e que a ciência estava fazendo mais progresso que a religião para explicar o mundo. Uma mulher não identificada que participa da discussão rebate, dizendo que a religião não está exatamente tentando descobrir como as partículas adquirem massa, então a comparação não procede. E Atkins não explica (talvez pelo pouco tempo disponível) como é que a descoberta de uma partícula que é observada depois do momento do Big Bang vai dizer algo sobre a criação em si ou a necessidade de um criador.
Também no rádio, Rodney Holder, do Instituto Faraday para a Ciência e Religião*, da Universidade de Cambridge, cita o teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer, para quem Deus está presente nas coisas que sabemos, e não nas coisas que ignoramos, para afirmar que a descoberta do bóson de Higgs nos faz entender mais (e não menos) sobre Deus. Holder diz que, no fundo, no fundo, toda partícula é “de Deus” por refletir Sua criatividade, e o trabalho dos cientistas do Cern tem o efeito de nos fazer conhecer mais e mais sobre a riqueza da criação.
Enfim, essa foi a repercussão do bóson de Higgs no debate sobre ciência e religião que eu encontrei e considerei que valia a pena comentar. Espero que ao longo dos próximos dias tenhamos mais comentários a respeito dessa descoberta realmente espetacular.
* Aviso: o Instituto Faraday, mencionado neste post, já concedeu a esse blogueiro uma bolsa para participar de um curso de ciência e religião na Inglaterra, em 2011.
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