Na introdução de Uma força medonha, o volume final de sua Trilogia Cósmica, C.S. Lewis afirma que parte das ideias que ele colocou em sua distopia sobre uma sociedade governada por cientistas inescrupulosos tinha sua versão “não ficcional” em um outro livro seu, escrito dois anos antes: A abolição do homem. Finalmente tirei o livro da maior coleção da minha biblioteca (o “tenho, mas ainda não li”), e quem dera eu não tivesse levado tanto tempo para pegar essa obra que tem de poderosa o que tem de curtinha – são menos de 100 páginas, o que significa que o leitor nem precisará de muita paciência para saber o que um livro didático de Inglês tem a ver com a ambição de a ciência, tendo liberdade, “dominar a espécie humana e recondicioná-la: tornar o homem um animal realmente eficiente”, como diz um dos caras maus de Uma força medonha.
É tudo um processo – talvez nem tão longo assim – que começa pela criação do que Lewis chama de “Homens sem Peito” (que, diante da sociedade, têm um nome bem mais bonito: “Intelectuais”). A característica dessas pessoas é “uma carência de emoções férteis e generosas” (estou usando a tradução da Martins Fontes; existe uma edição mais recente, da Thomas Nelson). O peito, explica Lewis, é o meio pelo qual “a cabeça domina o estômago”, é a sede da magnanimidade: “o Peito, a Magnanimidade, o Sentimento – esses são os indispensáveis dignatários de ligação entre o homem cerebral e o homem visceral. Pode-se dizer mesmo que é por esse elemento intermediário que o homem é homem, pois pelo seu intelecto ele é apenas espírito, e pelo seu apetite ele é apenas animal”. A educação moderna – e aí entra o livro didático – seria fundamental para criar cada vez mais “Homens sem Peito”. Com sua sensibilidade sufocada, eles serão incapazes de atingir o objetivo da educação, na definição aristotélica: “que o aluno goste e desgoste do que é certo gostar e desgostar”.
Eis a chave: se já não é possível apreciar nada, também não é possível apreciar a verdade, a beleza ou a virtude. E, com isso, cai por terra também “a convicção de que certas posturas são realmente verdadeiras e outras realmente falsas, a respeito do que é o universo e do que somos nós”. O objetivo, no fim das contas, é derrubar todo o nosso sistema de valores – “isso a que tenho chamado por conveniência de Tao, e que outros poderiam chamar Lei Natural, Moral Tradicional, Primeiros Princípios da Razão Prática ou Primeiros Lugares-comuns” –, alegando que ele é fruto apenas de sentimentos subjetivos, e substituí-lo por outra coisa: um sistema que os engenheiros sociais (chamados por Lewis de “Inovadores”) dirão ser baseado em valores “racionais” ou “biológicos”, mas que normalmente é a hipertrofia de algum dos princípios do Tao previamente isolado. É subjetivismo e relativismo moral na veia; sem o “peito”, que são as emoções ordenadas, sobram as “vísceras”, os afetos desordenados – e, sem querer dar spoiler, mas dando, afetos desordenados são o tema de um outro livro genial de Lewis, O grande divórcio.
A leitura de A abolição do homem se tornou ainda mais urgente hoje do que era quando foi escrito, em meio à Segunda Guerra Mundial, pois o relativismo moral e o reducionismo científico avançaram tremendamente nessas oito décadas
Neste clima de confusão total, está pronto o cenário para a “abolição do homem”. O engenheiro social dirá:
“Esse Tao que, segundo parece, devemos tratar como algo absoluto é simplesmente um fenômeno como qualquer outro – o reflexo, na mentalidade dos nossos antepassados, do ritmo de suas plantações, talvez mesmo de sua fisiologia. Já conhecemos em linhas gerais como essas coisas foram produzidas, em breve poderemos conhecê-las em detalhe, e por fim seremos capazes de produzi-las à vontade. É claro que, enquanto não sabíamos como se produziam as mentalidades, aceitamos esse aparato mental simplesmente como um dado, ou até mesmo como um mestre. Mas muitas coisas da natureza que foram nossos mestres acabaram se tornando nossos servos. Por que não a mente? Por que nossas conquistas sobre a natureza devem ser interrompidas, numa reverência descabida, ante esse pedaço persistente e derradeiro da ‘natureza’ que tem sido até aqui chamado de consciência humana? (...) Você nos diz que não nos restará nenhum valor se pisarmos fora do Tao. Muito bem: provavelmente descobriremos que podemos perfeitamente ir em frente sem valor nenhum. Consideremos todas as ideias de dever como um simples e útil método de sobrevivência: deixemos de lado tudo isso e comecemos a fazer o que bem quisermos. Decidamos por nós mesmos o que o homem deve ser e façamos com que se torne o que desejamos, não com base num valor ideal, mas porque queremos que assim seja. Tendo decidido as nossas circunstâncias, sejamos agora os nossos próprios mestres e escolhamos os nossos próprios destinos.”
O poder total do homem sobre a natureza, conquistado por meio da ciência, passa pelo poder do homem sobre o próprio homem, “para fazer de si mesmo o que bem quiser” – e aqui chegamos à fala do personagem de Uma força medonha. Mas, como acontece na distopia, o que existe, no fim das contas, é apenas “um poder exercido por alguns homens sobre outros, com a Natureza como instrumento”: aqueles são os Manipuladores, que exercerão o domínio “mediante a eugenia, a manipulação pré-natal e uma educação e propaganda baseadas numa perfeita psicologia aplicada”. A natureza humana terá sido vencida, e no peito vazio das pessoas os Manipuladores colocarão o que bem quiserem. “Os objetos do condicionamento (...) não são homens em absoluto; são artefatos. A conquista final do homem mostrou-se a abolição do Homem.” E, em uma ironia cruel, os Manipuladores, pensando ter vencido a Natureza, estarão “sujeitos àquilo que neles mesmos é puramente ‘natural’ – aos seus impulsos irracionais. A Natureza, livre dos valores, controla os Manipuladores e, por meio deles, toda a humanidade”.
Profético? Sem dúvida. Ainda que hoje a sociedade pareça ter pulado direto do racionalismo cientificista para o sentimentalismo desregrado, continuamos sem o Peito; apenas trocamos o cérebro pelas vísceras como os senhores absolutos. Então, o perigo permanece. Temos saída? Temos: defender o Tao a qualquer custo. “Somente o Tao é capaz de prover uma lei de ação humana comum que possa abarcar legisladores e legislados igualmente. Uma crença dogmática em valores objetivos é necessária para a própria ideia de uma regra que não seja tirânica ou de uma obediência que não seja servil”, diz Lewis.
E, rejeitando as acusações de que suas reflexões são um ataque à ciência, Lewis diz que “a cura poderia vir da própria ciência”, desde que ela desista de “subjugar a realidade aos desejos dos homens” e passe a buscar o conhecimento como resposta ao “problema principal”, o de “conformar a alma à realidade”. “Quando explicasse algo, ela [a ciência] não aboliria esse algo. Quando tratasse as partes, não esqueceria do todo. (...) Os seus seguidores não usariam livremente os termos somente e meramente”, propõe, com uma paulada nada discreta no reducionismo que caracteriza nossos tempos. A questão final, que ele se coloca, é: os cientistas serão capazes de fazer isso? Ou a ciência, na sua própria essência, é uma atividade que necessariamente destrói seu objeto? Lewis não sabe a resposta; mas, neste segundo caso, ele sabe que esse processo precisará ser freado antes que mate a própria Razão.
Não é à toa que muita gente considere A abolição do homem o livro mais importante de Lewis, e me parece que sua leitura se tornou ainda mais urgente hoje do que era quando foi escrito, em meio à Segunda Guerra Mundial, pois o relativismo moral e o reducionismo científico avançaram tremendamente nessas oito décadas. Pará-los antes que vejamos essa plataforma causar “a destruição da sociedade que a aceitar” é um dos grandes desafios de nosso tempo – se não for o maior deles.
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