Que fique claro aqui: sou fã de C.S. Lewis. Li menos livros dele do que deveria ou gostaria, mas tudo que li – Mero cristianismo, Cartas do diabo a seu sobrinho (que li numa edição com um título muito melhor, As cartas do Coisa-Ruim), Os quatro amores (que estou terminando) – era ótimo. Estive duas vezes em Oxford e em ambas fiz questão de fazer um passeio guiado pelos locais frequentados por ele e J.R.R. Tolkien, além de programar pelo menos uma parada para um pint no Eagle and Child, o pub que os Inklings frequentavam.
Mas, apesar de toda a sua genialidade, Lewis não é infalível. No site da BioLogos, Bethany Sollereder, teóloga e pesquisadora da Universidade de Oxford que estuda questões ligadas à evolução, contesta o pensamento de Lewis a respeito da atividade dos animais predadores antes do pecado original. Ela parte de um trecho de O problema do sofrimento, de 1940. Lewis especula por que os animais se devoravam uns aos outros e reconhece que, se antigamente a crença era de que esse comportamento animal começou depois do pecado original cometido pelos primeiros seres humanos, na época de Lewis a ciência já tinha comprovado que os animais já estavam se matando muito antes que o homem surgisse. A solução de Lewis é a de que algum ser poderoso (e mau) havia corrompido os animais bem antes do surgimento dos homens.
E é aí, segundo Bethany, que os problemas começam. Ela apresenta duas objeções ao raciocínio de Lewis. A primeira é de ordem biológica: a atividade dos predadores não é uma “corrupção”, e sim uma ferramenta essencial para a seleção natural. “Onde quer que predadores coloquem pressão nos ecossistemas, segue-se uma criatividade genética e comportamental” que estimula a evolução, ela afirma.
A segunda objeção é bíblica. Bethany diz que nenhum trecho da Bíblia sugere uma corrupção demoníaca da criação. No primeiro relato da criação no Gênesis, ao fim de cada dia Deus contempla o que fez e vê que tudo era bom, e assim segue até o momento da criação do homem. Mesmo no trecho da carta de São Paulo aos Romanos segundo o qual a “criação foi sujeita à vaidade (não voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou)” (8, 21), nenhum intérprete bíblico considera que “aquele que a sujeitou” seja o demônio; a maioria vê nessa passagem uma referência ao próprio Deus; alguns entendem que seria Adão, a quem Deus entregou o cuidado da criação. Mas nunca o demônio.
Essa questão da predação antes do pecado original já tinha sido tratada aqui no blog faz muito tempo, lá em 2010. Os meus entrevistados, de três confissões cristãs diferentes, concordavam que o fato de um animal comer outro desde os primórdios da vida na Terra é parte da ordem estabelecida por Deus, não uma “corrupção”. E, de fato, se entendemos a evolução com o processo pelo qual Deus quis que o mundo “fizesse a si mesmo”, nada mais lógico que incluir os mecanismos predatórios como parte desejada desse processo.
Então, com toda a admiração que tenho (e muita gente tem) por Lewis, é como Bethany conclui: essa teoria de Lewis sobre a corrupção da natureza pelo diabo é uma das ideias dele que podemos descartar sem perder a riqueza do pensamento desse grande apologista cristão.
Pequeno merchan
Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro, e provavelmente haverá eventos de lançamento que anunciarei aqui no blog, assim que definirmos datas e locais.
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