Ilustração do Codex Egberti (século 10.º) mostrando Jesus caminhando sobre as águas.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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Neste sábado os católicos brasileiros comemoram a solenidade de Nossa Senhora Aparecida – a data recorda a descoberta da imagem da Virgem no fundo do Rio Paraíba do Sul, em 1717, episódio que envolveu uma pesca milagrosa semelhante àquelas descritas nos Evangelhos. Amanhã é o aniversário do famoso Milagre do Sol, um dos eventos centrais das aparições de Fátima, em 1917. E é aqui que os céticos já começam a torcer o nariz, pois, para eles, milagres não existem – David Hume escreveu um famoso ensaio (na verdade, é um capítulo de um livro maior) negando a possibilidade do milagre. Até mesmo teólogos cristãos já se propuseram a rechaçar esse tipo de acontecimento extraordinário, ainda que com argumentos diferentes dos ateus (Karl Rahner, é contigo). Para desmontar os argumentos desses dois grupos, C.S. Lewis escreveu um livro genial: Milagres, publicado em 1947.

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Mas, antes de entrar na questão propriamente dita – se é razoável crer em milagres, que Lewis define como “interferências de um poder sobrenatural na Natureza” –, o autor enfrenta uma controvérsia prévia e necessária: se o sobrenatural existe; afinal, se não existir, o problema do milagre já estará automaticamente resolvido. Sendo Lewis quem é, não dá nem para considerar spoiler se eu disser que ele vai defender que a Sobrenaturalidade (ele usa esses termos todos em maiúsculas, que mantenho aqui) é real; o interessante é como Lewis vai refutar o Naturalismo, a crença – porque é uma crença, gostem os naturalistas ou não – de que a Natureza é um sistema fechado, capaz de gerar a si mesmo, e fora do qual nada mais existe.

Contra essa ideia, Lewis recorrerá a realidades que, se analisadas com honestidade intelectual, veremos que não têm como surgir da forma como o Naturalismo propõe, a começar pela própria razão humana, mas também o julgamento moral. “As mentes humanas (...) não vêm do nada. Cada uma delas é integrada à Natureza advinda da Sobrenatureza: cada uma delas tem sua raiz-mestra em um Ser eterno, autoexistente, racional, a quem chamamos de Deus. Cada uma delas é uma ramificação, ou ponta de lança, ou incursão dessa realidade Sobrenatural na Natureza”, diz Lewis (p. 45 da edição da Thomas Nelson). Mais adiante, ele dirá que temos de “reconhecer uma fonte sobrenatural para nossas ideias de bem e mal” (p. 59).

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“Se o que chamamos de Natureza é modificado pelo poder sobrenatural, podemos ter certeza de que a capacidade de sofrer modificação integra a essência da Natureza

C.S. Lewis, em “Milagres”

Superada essa dificuldade, Lewis vai, então, explicar por que é perfeitamente possível crer na realidade dos milagres. Primeiro, ele atacará as objeções de cunho naturalista/materialista. A primeira delas, resumida na ideia de que “as pessoas podiam acreditar nisso [um fato tido como milagroso] antigamente porque não conheciam as leis da Natureza. Agora nós sabemos que isso é uma impossibilidade científica”, é rebatida até que com tranquilidade, porque dizer algo assim, no fim das contas, demonstra uma ignorância tremenda em relação ao que os antigos de fato sabiam. “A crença em milagres, longe de depender da ignorância das leis na natureza, só é possível na medida em que essas leis sejam conhecidas”, afirma Lewis (p. 72).

A segunda objeção naturalista é abordada em um dos meus capítulos preferidos do livro, porque nele Lewis dá uma tremenda aula sobre o que são, afinal, as “leis da Natureza” que o milagre “violaria”, fazendo dele algo impossível. Aqui o autor invoca a analogia da mesa de bilhar e da pessoa que mexe nas bolas após o jogador fazer sua tacada, alterando o curso que as leis da natureza previram para elas. Se a Natureza não é um sistema fechado em si mesmo, se existe um Poder Sobrenatural, não é nada absurdo supor que esse Poder possa “produzir dentro da Natureza acontecimentos que o ‘andamento’ regular de todo o sistema natural nunca teria produzido” (p. 83). Este é o ponto de Lewis: no fim das contas, os milagres não “quebram” as leis da Natureza: “a arte divina do milagre não é uma arte de suspender o padrão segundo o qual os acontecimentos se ajustam, mas de alimentar novos acontecimentos naquele padrão” (p. 89). E não é só isso: “Se o que chamamos de Natureza é modificado pelo poder sobrenatural, podemos ter certeza de que a capacidade de sofrer modificação integra a essência da Natureza” (p. 91, destaque meu).

Mas a crítica aos milagres não vem apenas do lado naturalista/ateu: também há pessoas religiosas que os negam, especialmente aqueles que se esforçam em retirar do cristianismo todo e qualquer elemento sobrenatural (por exemplo, a turma do “Jesus histórico”), deixando apenas o ensinamento moral e a “figura nobre” de Cristo. Quanto a esses, Lewis dirá que certamente têm uma “religião”, mas que não é o cristianismo, e sim qualquer outra coisa – o autor prefere o termo “panteísmo”. Gostem ou não essas pessoas, o milagre é central ao cristianismo, está na sua essência; retire os milagres do Evangelho, e o que sobra pode ser muito edificante, mas não é a religião do Verbo encarnado (voltaremos a isso).

Em um outro capítulo, Lewis vai tratar de um outro grupo: o dos que consideram que Deus pode fazer milagres, mas não os faz porque isso seria “indigno”, como se Deus tivesse de remendar sua criação com gambiarras ocasionais. Um subgrupo é o daqueles que, diante de um episódio extraordinário, desesperam-se em buscar uma explicação natural, por mais absurda que seja; já comentei aqui na coluna sobre esse tipo de pessoa que Lewis descreve assim:

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“Ele aceitará as explicações ‘naturais’ mais improváveis em vez de dizer que um milagre ocorreu. Alucinação coletiva, hipnotismo sem a permissão dos espectadores, conspiração instantânea generalizada para mentir e realizada por pessoas que não são conhecidas por serem mentirosas e que provavelmente não são beneficiadas pela mentira – todos esses são acontecimentos muito improváveis: tão improváveis que, exceto pelo objetivo especial de excluírem um milagre, eles nunca são sugeridos. Contudo, eles são preferíveis à admissão de um milagre.” (p. 148)

(Mesmo gente muito boa pode cair nessa de vez em quando, como bem sabe quem já leu minha opinião sobre a explicação do padre Stanley Jaki para o Milagre do Sol de Fátima.)

A resposta de Lewis vem com outra analogia. Ao fazer milagres, Deus não é o trabalhador incompetente que precisa fazer gambiarras para sua criação funcionar; ele é o gênio da poesia que, ocasionalmente, insere um verso fora do padrão habitual, mas que dá harmonia e beleza ao poema todo. O fato é que, à pergunta “se admitirmos a existência de Deus, devemos admitir o Milagre?”, Lewis responde: “Na verdade, na verdade, você não tem como se defender disso. Essa é a barganha. A teologia, com efeito, diz a você: ‘Admita que existe um Deus e, com ele, o risco de alguns milagres, e eu, em troca, ratificarei sua fé na uniformidade em relação à maioria dos acontecimentos” (p. 156).

“Se admitirmos a existência de Deus, devemos admitir o Milagre? Na verdade, na verdade, você não tem como se defender disso. Essa é a barganha.”

C.S. Lewis, em “Milagres”

O tema da harmonia, aliás, é o que fecha o livro nos capítulos em que Lewis analisa os milagres do Evangelho: desde o “Grande Milagre” – a Encarnação, que merece um belo capítulo – até os relatos de curas e outros feitos extraordinários narrados pelos evangelistas. A distinção entre “milagres da velha criação” e “milagres da nova criação” é interessante, mas o principal é mostrar que não há milagre supérfluo ou aleatório nos Evangelhos: todos eles remetem a algo mais profundo, mostram quem Cristo é, ou o que somos chamados a ser, por exemplo. Claro que, sendo católico, dei pela falta do milagre do “isto é o meu Corpo” e “isto é o meu Sangue”, mas não é algo que eu poderia exigir do protestante Lewis.

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Uma das coisas que me encantam na apologética de Lewis é que ele não se contenta apenas em afirmar por que alguma coisa é assim, mas também faz o mesmo esforço para explicar por que ela não pode ser de outra forma. Não é exclusividade dele – aliás, guardando as devidas proporções, é o método de São Tomás na Suma. Mas Lewis consegue fazer isso com um talento incrível para metáforas e analogias. Da mesa de bilhar ao poeta grego, passando pelo “Jesus paraquedista” e pelo tanque de peixes no laboratório sacudido por uma explosão, Milagres está cheio dessas analogias que nos ajudam a ter certeza de que, mesmo que jamais presenciemos um milagre diante de nós, é totalmente razoável crer na realidade dos milagres.

Livro de entrevistas agora tem versão para o Kindle

A razão diante do enigma da existência, o livro que reúne quase 30 entrevistas que fiz ao longo de mais de 15 anos escrevendo no Tubo de Ensaio, segue esgotado na editora (até onde eu sei, ainda pode ser encontrado em algumas lojas da Loyola e na loja on-line do MBL; já estamos providenciando uma reimpressão). Mas temos uma novidade: desde a última quinta-feira, está disponível também o e-book para Kindle.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]