Não conheço muito da história do bem-aventurado cardeal Newman, fora o fato de ele ter sido clérigo anglicano antes de se converter e entrar na Igreja Católica. Mas, enquanto estava no México, achei na livraria da Universidade Panamericana um pequeno volume, Cristianismo y Ciencias en la universidad, de sua autoria (Eunsa, 2011, 113 páginas). É um livrinho curto, que o leitor pode matar tranquilamente em uma tarde (é bem menor que o The God particle, que eu tinha planejado ler no recesso de Natal, mas não consegui), e que reúne três conferências direcionadas a estudantes da Universidade Católica da Irlanda, que Newman ajudou a fundar e da qual foi reitor por alguns anos. Até por isso, pressupõe-se que sua audiência seja formada apenas por católicos, o que ajuda a matizar algumas das declarações do então padre Newman.
A primeira conferência, “Cristianismo e ciência médica”, é de 4 de novembro de 1858 e direcionada aos estudantes de Medicina da universidade. Uma das primeiras coisas que o reitor diz aos alunos é que a saúde do corpo, da qual se ocupa o médico, não é o fim último da existência. Newman cita o exemplo hipotético de uma religiosa que cuida de doentes durante uma epidemia. Os médicos a avisam que, se permanecer no local, acabará doente também ela e morrerá, mas a religiosa insiste (é a mesma situação pela qual passaria são Damião de Molokai). Não é que os médicos estivessem errados, diz Newman; é que a verdade a respeito da saúde da religiosa está, de certo modo, subordinada à sua missão.
Newman também pede aos estudantes que não caiam em duas tentações: uma é a de se concentrar apenas em sua profissão e descartar outros tipos de conhecimento; é preciso ver além da Medicina, ver o homem como mais que um aglomerado de funções fisiológicas em nada diferentes das que realizam os demais animais. A outra tentação é a de ceder ao materialismo, já que, enquanto as descobertas científicas são feitas de evidências, a moral e a religião, em comparação, se assemelham a “sombras e contornos”. “Que lânguida é a iluminação que [a consciência] projeta e que fraca sua influência comparada com a convicção que trazem a vista e o tato, que são o fundamento da ciência física”, afirma Newman. Ao convidar os estudantes a recusar o materialismo, o reitor ainda afirma que o médico católico é uma ponte entre ciência e fé.
A segunda conferência, “Cristianismo e pesquisa científica”, foi escrita em novembro de 1855, mas nunca chegou a ser lida. Dirigia-se aos estudantes da Faculdade de Ciências, e logo no início Newman se propõe a criticar “o desnecessário antagonismo que às vezes existe entre os teólogos e os cultivadores das ciências em geral”. Um tema recorrente ao longo do livro é o próprio conceito de universidade, não como um amontoado de faculdades isoladas, mas como o local por excelência onde se adquire um conhecimento “universal”, amplo, sem que cada profissional fique “bitolado” em sua área de atuação. Infelizmente isso vem se perdendo hoje. Como diz o professor Carlos Ramalhete, colunista da Gazeta, hoje o advogado já não entende o que diz o engenheiro, que por sua vez é incapaz de compreender o médico, e por aí vai. Não estamos falando do jargão próprio de cada profissão, mas do próprio modo de pensar, dos pressupostos de cada área. O que Newman defende é o papel da Filosofia como eixo comum entre os diferentes conhecimentos.
Segundo o reitor, o cientista cristão não deve se alarmar ao perceber que há “diferenças de tom” (e não “uma dificuldade inexplicável, uma contradição assombrosa, muito menos uma contradição em relação a fatos reais”) entre a Revelação e a Natureza. O que parece contraditório na verdade não o é, diz Newman, para quem as coisas que parecem estranhas à imaginação não o são à razão. “O que crê na Revelação com a fé absoluta que é patrimôno do católico não é uma criatura nervosa que se assusta com qualquer barulho repentino e que se sente tomada pelo pânico ante qualquer situação estranha o inédita que se lhe apresente. Não tem temor algum (a própria ideia lhe faz rir) de que por qualquer outro método científico se possa descobrir algo que contradiga qualquer dos dogmas da religião”, afirma Newman. Ele segue falando sobre a “segurança inamovível de que se há algo que parece ser provado por um astrônomo, um geólogo, um cronólogo, um historiador ou um etnólogo contra os dogmas da fé, ao fim isso resultará: ou não ter sido realmente provado; ou não ser contraditório; ou não ser contraditório com nada que tenha sido verdadeiramente revelado, e sim com algo que foi confundido com a Revelação”. O reitor cita dois exemplos: o do heliocentrismo e o da aceitação da filosofia de Aristóteles.
Por fim, Newman faz uma defesa ardorosa da liberdade de pesquisa, e afirma que os dogmas católicos não são obstáculos a essa liberdade, assim como as leis físicas não são obstáculos ao movimento do corpo. Também critica os teólogos que, “com uma impaciência nervosa com a possibilidade de as Escrituras não se encaixarem com a última especulação da moda, se empenham em publicar comentários geológicos ou etnológicos que logo precisam ser alterados ou até mesmo retirados antes da publicação devido aos avanços da ciência, essa mesma que tão temerariamente utilizam para auxiliar as Escrituras”. E adverte (ao mesmo tempo tranquilizando) os teólogos de que, ainda que a ciência cometa erros, eles são temporários e benéficos, à medida que, “no fim das contas, o único efeito do erro é promover a verdade”. Confiar na soberania da verdade ajuda a não se inquietar com novidades científicas.
O texto que encerra o livro é “Cristianismo e Física”, conferência lida em 17 de dezembro de 1855. Nela, Newman diz querer demonstrar que não há antagonismo entre Física e Teologia e explicar por que, apesar disso, tantas pessoas acreditam nessa incompatibilidade. Mas, antes disso, ele alerta a audiência para não cair nos extremos de rejeitar a ciência em nome de uma certa “pureza de fé”, nem de desprezar a religião em nome dos “avanços da ciência” (um aviso que segue atual, acrescento).
Newman passa a explicar as diferenças entre Física e Teologia de uma maneira que faz pensar nos Magistérios Não Interferentes de Stephen Jay Gould. A Física, diz o reitor, é a “Filosofia da matéria”, lida com os fenômenos, as leis da natureza. Mas o espiritual escapa completamente ao escopo da Física. Um físico que também tem fé religiosa manifesta uma opinião pessoal, não “de cientista”, porque a Física “não diz absolutamente nada” sobre as realidades sobrenaturais. O físico lida com fatos e leis; o teólogo, com razões e com o Autor das leis. É verdade, diz Newman, que as Escrituras também fazem afirmações sobre o mundo físico; mas a Igreja sempre se absteve de dar uma interpretação definitiva para essas passagens bíblicas, que admitem tantas interpretações que seria impossível uma descoberta física contradizer todas elas. Assim, a Teologia não tem nada a temer em relação à Física, argumenta o reitor.
Assim, os desentendimentos entre Física e Teologia ocorrem não por causa dos campos de estudo, mas devido ao fato de que uns resolveram impor seu método aos outros. A Física, diz Newman, é empírica e indutiva, vai ordenando e analisando uma massa de informações que se oferece ao cientista, para chegar a novas verdades; a Teologia é dedutiva, trabalha com a Revelação. Na descrição do reitor, “desde a época dos Apóstolos até o fim do mundo não se pode agregar nenhuma verdade estritamente nova à informação teológica que foi inspirada aos Apóstolos para que a guardassem. Naturalmente, é possível fazer inúmeras deduções partindo da doutrina original. Mas, como as conclusões já estavam nas premissas, tais deduções não são, para falar com propriedade, adições.”
A seguir, Newman dá exemplos de intromissões. O primeiro deles ocorre quando religiosos, baseados em suas interpretações da Bíblia, tentam fazer afirmações taxativas sobre como o mundo é, como foi ou como deverá ser. O reitor cita profecias milenaristas e a controvérsia do heliocentrismo para ilustrar esse tipo de situação. Depois disso, o reitor passa a criticar as tentativas de aplicar o método indutivo à Escritura, à história eclesiástica e ao mundo natural para tirar daí conclusões teológicas. Newman ataca de forma especial a chamada “Teologia Natural”, que não por coincidência é o nome do livro de William Paley que introduz a metáfora do relojoeiro. Quatro anos antes de Darwin publicar A origem das espécies, Newman argumenta que “colocar o peso da prova principal [da existência de Deus] exclusivamente no argumento de um Desenho que o universo proporciona” é muito cômodo. O sacerdote reconhece que a Teologia Natural (ou Teologia Física, como a chama Newman) tem lá seus méritos, mas aponta que Paley não trouxe nada de novo. “O raciocínio com que Sócrates, diante de Xenofonte, rebateu o pequeno ateu Aristodemo é exatamente o mesmo raciocínio da Teologia Natural de Paley”, diz, citando Thomas Macauley.
Newman vai além: levada às últimas consequências, a Teologia Física ajudaria a combater o Cristianismo. O reitor a chama de uma “verdade falsa”, já que é meia verdade. Ela considera apenas três atributos divinos, o Poder, a Bondade e a Sabedoria, colocando peso demais no Poder e peso de menos na Bondade. Fora isso, não diz absolutamente nada sobre o Cristianismo, os demais atributos divinos, a consciência ou a Providência divina; ao colocar ênfase excessiva nas leis da natureza, desconsidera a sua suspensão (o milagre, que é “a própria essência da ideia de uma Revelação”). “O Deus da Teologia Física pode, com muita facilidade, chegar a ser um mero ídolo”, afirma Newman. Ao tirar de Deus a possibilidade de suspender as leis que Ele mesmo criou, a Teologia Física diminui Deus, conclui o sacerdote.
Feliz 2012!
Como este é o último post do ano, quero desejar aos leitores do blog um feliz 2012! Aos mais apreensivos com o que o ano reserva, uma pequena historinha: ao visitar a loja do Museu Nacional de Antropologia, na Cidade do México (aliás, o museu é parada obrigatória para quem for à capital mexicana), vi que as agendas de 2012 vendidas lá iam até 31 de dezembro. Então, se os próprios mexicanos não estão botando fé no fim do mundo, não seremos nós que vamos nos preocupar…
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