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Carl Sagan e o combate à superstição

Reprodução

Eu me lembro muito vagamente de quando a Globo exibiu a minissérie Cosmos nas manhãs de domingo. E, da série propriamente dita, não lembro absolutamente nada. Mas guardei o nome de Carl Sagan. Nunca havia lido nada dele até começar este blog, e no amigo secreto aqui da redação, ano passado, pedi como uma das opções O mundo assombrado pelos demônios (Companhia das Letras, 2006), que a Carol Olinda gentilmente conseguiu para mim.

A proposta do livro é clara: combater a superstição e a pseudociência, coisas como astrologia e Nova Era. Eu acho ótimo. Tenho casos na família de gente que foi vítima de curandeiros midiáticos (no fim das contas, vítima foi a família inteira, não apenas a pessoa em questão). Por exemplo, Sagan passará vários capítulos do livro derrubando relatos de abdução e coisas parecidas. Como astrônomo, está na área que mais domina.

Naquilo a que Sagan se propõe, demolir a superstição e a pseudociência, o livro é ótimo. Mas como se define superstição? Por exemplo, para um ateu, qualquer manifestação religiosa é superstição; para um adepto de determinada religião, as manifestações religiosas dos outros são superstição. Sagan vai pelo primeiro caminho, e ali ele se enrosca um pouco, como veremos.

Logo em um dos primeiros capítulos (o 2, para ser mais preciso), Sagan proclamará a superioridade da ciência sobre a religião. A ciência, diz ele, tem peer review (embora alguns escândalos recentes tenham abalado a confiança nesse sistema) e admite seus erros. O físico tem laboratório; já o metafísico não tem. O problema desse argumento é que o conhecimento religioso não é da mesma natureza do conhecimento científico. As afirmações do conhecimento religioso não podem mesmo ser comprovadas cientificamente. Elas dependem, sim, de argumento de autoridade, mas sem desrespeitar a lógica.

Divulgação / Nasa/JPL
Sagan criou um “kit de detecção de mentiras” em seu livro, mas caiu em algumas das armadilhas que denuncia.

Começo falando do argumento de autoridade porque ele estará presente no “kit de detecção de mentiras” exposto no capítulo 12. É um dos pontos altos do livro. O argumento de autoridade é o tipo de coisa que Sagan condena. E de fato, na ciência não se deve usá-lo mesmo. Dom Sérgio Braschi me disse que um dos méritos de Galileu foi justamente derrubar o predomínio do argumento de autoridade na esfera científica. Só que o próprio Sagan acaba caindo, ao longo do livro, em várias das armadilhas retóricas que denuncia.

Em alguns pontos do livro, por exemplo, encontram-se expressões como “se você fica doente, você pode usar antibiótico, ou chamar o curandeiro”. Isso é ou não é uma falsa dicotomia? O fato de haver quem rejeite a ciência numa hora dessas não significa que recorrer à ciência e ter uma crença religiosa sejam coisas incompatíveis. Um outro truque retórico denunciado por Sagan é o da “evidência suprimida ou meia-verdade”, que o autor comete quando se refere às curas observadas no santuário francês de Lourdes (p. 268-269). Sagan usa os números para demonstrar que, estatisticamente, é mais fácil ser curado espontaneamente de câncer ficando em casa do que indo a Lourdes. Bom, não se discute com números. Mas conheço relatos de tumores que somem subitamente. Os três casos comprovados de Lourdes tinham essa característica? Sagan não diz. E os outros casos de cura, envolvem que tipo de doença? Sagan não diz (a título de curiosidade, quem quiser pode ler uma entrevista com um médico que trabalha em Lourdes). Em vez disso, Sagan pergunta: “se a reza funciona, por que Deus não consegue curar o câncer ou repor um membro amputado?” Bom, sobre membros amputados, é fartamente documentado o caso de Calanda, uma cidade de Aragão, na Espanha. Em 1640, um tal Miguel Juan Pellicer teve restituída a perna direita, que havia sido amputada em 1637, com gangrena. Pellicer chegou a se encontrar com o rei Felipe IV. Existe um livro em português sobre o assunto.

No mesmo capítulo em que fala de Lourdes, Sagan conta a deliciosa história de Carlos, uma entidade que, digamos, “baixava” em uma outra pessoa, trazendo revelações do além. A moral da história (é muito boa para eu contar aqui, leiam o livro) é “chequem as informações”. Lembram daquele hoax sobre a banda Rouge ser satânica? Ou da entrevista fictícia da J.K. Rowling que rodou a net como se fosse verdadeira? Muita gente teria evitado fazer papel de palhaço se tivesse verificado direito. Mas então por que Sagan não checou as fontes sobre o número de mortes na Inquisição, que ele estima em “talvez milhões” na página 147? Ele escreveu O mundo assombrado pelos demônios mais ou menos na mesma época em que Henry Kamen tinha publicado seus livros sobre a Inquisição. Também não custava checar as fontes da afirmação sobre a “heresia da terra redonda” (página 366), já que não consta que a Igreja alguma vez tenha condenado essa proposição.

Dois capítulos que mostram um certo desconhecimento de Sagan sobre a religião são o 7 e o 8. No capítulo 7, Sagan critica (e com razão) a histeria provocada pelos relatos de possessões demoníacas nos séculos passados. Mas, convenhamos, do jeito que o texto está escrito parece que a coloridíssima demonologia medieval persiste até hoje (ou seja, o autor recorre ao “espantalho”)! OK, temos essas lamentáveis “sessões de descarrego” televisivas, mas o tempo dos íncubos e súcubos se foi há muito. Inclusive, pelo menos no que diz respeito ao catolicismo, é muito difícil que se ateste uma possessão. O ceticismo do padre Karras, de O Exorcista (meu filme de terror preferido), é a regra. Além disso, vale lembrar que, naquele tempo em que as pessoas tinham medo de ficarem grávidas de diabinhos, elas acreditavam em coisas bem esdrúxulas também do ponto de vista científico. Se a ciência não estava desenvolvida, por que a surpresa ao constatar tais crenças?

(um adendo: aos que se interessam pelo tema, confiram o texto de um jornalista que acompanhou uma sessão de exorcismo feita pelo padre espanhol Jose Antonio Fortea)

Reprodução
“Íncubo”, pintura de 1870. Sagan devia saber que esse tipo de demonologia está obsoleto há muito tempo.

O capítulo 8 fala das aparições (dentro do contexto maior das experiências com alienígenas). Sagan faz um bocado de perguntas sobre os motivos e o conteúdo das aparições que simplesmente não têm resposta fácil. Por que Nossa Senhora não avisa os chefões, em vez de gente simples? Por que os recados são tão prosaicos, do tipo “rezem o terço”? É efetivamente o tipo de coisa que não entenderemos nessa vida (já consigo ouvir gente me mandando reler a página 245, mas o que se pode fazer? É assim mesmo…). E é curioso ver como Sagan descarta de antemão as experiências de aparições como produto da mente (e novamente recorrendo ao truque da evidência suprimida quando, ao falar de Fátima, se concentra no conteúdo das mensagens e omite os sinais que a acompanharam, como o chamado “milagre do Sol”), enquanto conta, em outro ponto do livro, como quase foi execrado ao sugerir que uma certa pesquisa científica se mantivesse aberta à hipótese de haver vida extraterrestre.

E, por último, como um comentarista do blog já citou aqui em outra ocasião, temos o interessante capítulo 10 do livro, com a história do dragão na garagem. Mas ninguém reparou como a conclusão que Sagan tira da história bate de frente com o “ausência de evidência não é evidência de ausência” (p. 245 e 257), aliás também já citado aqui por outro comentarista do blog?

Não me entendam mal: eu sinceramente gostei do livro e recomendo a leitura. Inclusive já comprei outras obras de Sagan, e fiquei curioso para ver Cosmos. A defesa que ele faz, nos capítulos finais, do ensino e da valorização da ciência nas escolas e entre a criançada é comovente, e eu concordo inteiramente com ela. Mas percebi, ao longo do texto, falhas e incoerências que achei por bem comentar. Não vejo problema nenhum em ser cético a respeito de experiências religiosas, mas gostaria que a crítica fosse melhor embasada em vez de, por exemplo, recorrer à demonologia medieval como se ela estivesse em vigor ainda hoje, para mencionar apenas um dos truques retóricos que Sagan acertadamente condena, mas que também comete.

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Várias livrarias, reais e virtuais, têm o livro em estoque. Os preços vão de R$ 19,20 a R$ 27,50.

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Outros livros que já saíram no blog
Pilares do tempo – Ciência e religião na plenitude da vida (Stephen Jay Gould)
Galileu – Pelo copernicanismo e pela Igreja (Annibale Fantoli)

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