Santo Agostinho ao saber que, em pleno século 21, há católicos achando que o universo tem 6 mil anos e que o Sol gira em torno da Terra.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney
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Fico sabendo, na revista on-line Crisis, que no dia 29 haverá um evento chamado “Restore Truth Conference”, no estado americano do Wisconsin, direcionado a católicos. O nome parece bonito até você descobrir qual “verdade” é essa que os organizadores querem “restaurar”: o criacionismo de Terra jovem e, pasmem, o geocentrismo. Os palestrantes incluem o diretor do Centro Kolbe para o Estudo da Criação (o equivalente católico do Answers in Genesis) e Robert Sungenis, autor de um livro chamado Galileo was wrong – e que já tive o desprazer de mencionar no Tubo algumas vezes.

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Eric Sammons, editor-chefe da Crisis, escreveu um ótimo artigo explicando tudo o que há de profundamente errado com as ideias de Sungenis, Hugh Owen (o diretor do Centro Kolbe) e o padre Chad Ripperger, que será o principal palestrante do evento. E, por ideias, ele se refere menos ao geocentrismo e ao criacionismo propriamente ditos, e mais à alegação de que o geocentrismo e o criacionismo são as únicas alternativas lícitas para um católico porque apenas elas são consistentes com uma interpretação literal da Bíblia e com o “consenso dos Padres da Igreja”; todo o resto é “enganação modernista” ou coisa do tipo.

É contra isso que Sammons vai argumentar, demonstrando que a postura da Igreja, há muitos séculos, é a de examinar as descobertas científicas e, havendo prova avassaladora de uma certa teoria que pareça contradizer a Bíblia (o verbo que destaquei é importante), admitir que a interpretação corrente das Escrituras pode estar errada e precise ser revista. Era exatamente o que defendia o cardeal Roberto Belarmino durante o primeiro processo de Galileu, em 1616, e Igreja seguiu essa regra à risca no caso do heliocentrismo, diz Sammons, recorrendo a um livro do cardeal Walter Brandmüller que trata não só do caso Galileu, mas toda a continuação dessa controvérsia até um julgamento crucial realizado pelo Santo Ofício no século 19.

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Para desgosto de católicos criacionistas e geocentristas, está totalmente estabelecido que o universo tem bilhões de anos e que a Terra gira em torno do Sol

Afirmar, portanto, que o criacionismo de Terra jovem e o geocentrismo são a “verdade católica”, diz Sammons, “faz mais mal que bem”, usando “pseudociência católica que ignora (ou seleciona) descobertas científicas para validar interpretações da Escritura”. Usar uma interpretação 100% literal da Bíblia ou o “consenso dos Padres da Igreja” para decidir sobre a verdade ou erro de uma teoria, descoberta ou fato científico “não segue a metodologia hermenêutica que a Igreja definiu séculos atrás”, nas palavras do editor da Crisis. Para dar um exemplo, eu sei lá se os Padres da Igreja chegaram a dizer algo sobre os continentes há na Terra, mas, se tivessem dito, o “consenso” certamente excluiria a América e a Oceania – e, ainda assim, aqui estamos, não? E São Basílio de Cesareia não disse, no Hexamerão, que o morcego era um pássaro?   

Para desgosto de católicos criacionistas e geocentristas, está totalmente estabelecido que o universo tem bilhões de anos e que a Terra gira em torno do Sol. Querer negar isso, e ainda por cima vender essa negação como “verdade católica”, é fazer exatamente aquilo que Santo Agostinho condenou no seu De Genesi ad litteram:

“Acontece muitas vezes que um não cristão de tal modo conhece algo sobre a terra, o céu, os demais elementos deste mundo, o movimento e a conversão ou também a grandeza e a distância dos astros, os eclipses do sol e da lua, os círculos dos anos e dos tempos, as naturezas dos animais, das frutas, das pedras e as demais realidades semelhantes, que o defende por argumentos verdadeiros e pela experiência. Mas é muito vergonhoso, pernicioso e digno de se evitar ao máximo que um cristão fale destes assuntos como estando de acordo com Escrituras cristãs, pois ao ouvi-lo deliberar de tal modo que, como se diz, cometa erros tão absurdos, um infiel mal consegue segurar o riso. E o mal não está em que se zombe de um homem que comete erros, mas que os de fora acreditem que nossos autores afirmem tais coisas. E assim são criticados e rechaçados como ignorantes.” (livro 1, capítulo 19, parágrafo 39).

Eu recomendo demais a leitura do artigo de Sammons como um aviso aos católicos, especialmente aqueles mais ligados ao tradicionalismo e que podem se sentir tentados a abraçar a pseudociência do Centro Kolbe e de Sungenis. Mas nem tudo é perfeito no texto de Sammons...

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A Teoria da Evolução não contradiz o catolicismo

Sammons critica, com muita razão, o criacionismo de Terra jovem, mas, quando fala da Teoria da Evolução, ele compra partes do discurso ora dos próprios criacionistas, ora do ateísmo militante. Vejam, por exemplo, esse trecho:

“A evolução darwiniana, especialmente a macroevolução biológica, tanto na sua forma original quanto na ‘neodarwiniana’, tem sido usada nos últimos 150 anos para promover uma visão de mundo fundamentalmente anticatólica, que rejeita o papel de Deus em nosso universo [é nisso que os ateístas querem que acreditemos, que a evolução escanteou Deus]. E, da forma como é popularmente entendida e ensinada, a evolução darwiniana tem pouquíssima evidência científica a apoiá-la [é nisso que os criacionistas querem que acreditemos].”

Mais adiante, Sammons fala dos “perigos da evolução darwiniana” e, quase no fim do texto, afirma que “somos livres para rejeitar as teorias de base darwiniana (e deveríamos fazê-lo, em minha opinião)”. Ele não se disse um defensor do Design Inteligente, mas eu seria capaz de apostar alguns reais nisso.

Ainda que ateus usem a evolução para argumentar que ela torna Deus desnecessário ou irrelevante, isso é um non sequitur

Eu vivo repetindo aqui que o destino eterno de ninguém será definido por defender criacionismo de Terra jovem, criacionismo de Terra antiga, DI ou evolução como a melhor explicação para a variedade de formas de vida na Terra. Mas, dito isso, temos que esclarecer algumas coisas. A primeira é que há, sim, bastante evidência a respeito da macroevolução. Semelhanças no genoma e nos embriões de espécies muito diversas, registro fóssil das espécies transicionais, estruturas homólogas, enfim, há muitos elementos que, analisados em conjunto, dão força à ideia de macroevolução. Quem quiser saber mais pode recorrer a livros como Por que a evolução é uma verdade, de Jerry Coyne; se o ateísmo do autor for um problema, busque Saving Darwin, de Karl Giberson, ou A evolução, de Francisco Javier Novo.

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A segunda é que, ainda que ateus usem a evolução para argumentar que ela torna Deus desnecessário ou irrelevante, isso é um non sequitur. O próprio Darwin escreveu, em cartas, que não via contradição alguma em ser cristão e aceitar a evolução, embora ele também tivesse tirado algumas conclusões não científicas da teoria que desenvolvera, como lembrou meu colega Flavio Gordon, em uma coluna que eu também comentei aqui. Mas a teoria, em si, é uma explicação sobre como as espécies animais e vegetais no planeta se diversificaram a partir de ancestrais comuns, e só. Darwin nem sequer entrou na questão sobre a origem da vida, a passagem da matéria inorgânica para a orgânica. Sammons, aliás, parece entender que defender um processo natural causador dessa mudança seria problemático para a fé, ou uma consequência de uma visão ateísta da evolução, mas aí já estamos entrando no terreno do “Deus das lacunas”...

Desde que a Teoria da Evolução surgiu, gente boa trabalhou e continua trabalhando para mostrar que ela é compatível com a fé católica – como, aliás, disse Pio XII na Humani generis. Em linguagem coloquial, podemos dizer que os mecanismos evolutivos são a maneira como Deus cria, e pela qual manifesta sua criatividade. Em linguagem filosófica (tomista, ainda por cima!), podemos dizer que a evolução é a “causa secundária” para a variedade da vida na Terra e que, longe de dispensar, depende da “causa primeira”, que é Deus. Claro, ainda restam alguns pontos delicados, como a compatibilidade entre o relato do pecado original (que precisa ser lido literalmente no que diz respeito à existência de um primeiro casal) e a genética de populações, mas também há gente boa em cima disso, como Kenneth Kemp. Como o Deus que se revelou na Bíblia é o mesmo que desenhou os processos evolutivos, mais cedo ou mais tarde essas respostas virão.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]