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Sendo católico, obviamente creio que existe vida após a morte física – inclusive dizemos isso todo domingo na missa: a fé na vida eterna é o último dos artigos do Credo. E, por se tratar de algo que diz respeito ao sobrenatural, ao transcendente, jamais me afligiu que isso estivesse fora do alcance da investigação científica. No entanto, fiquei aberto a repensar esta última afirmação – a de que a ciência não tem absolutamente nada a dizer sobre o tema – depois de ler Ciência da vida após a morte, livro curtinho de Alexander Moreira-Almeida, Marianna de Abreu Costa e Humberto Schubert Coelho, todos integrantes do Núcleo de Pesquisa em Saúde e Espiritualidade da Universidade Federal de Juiz de Fora (Nupes-UFJF; Moreira-Almeida é o fundador e diretor do núcleo). A obra saiu primeiro em inglês, no fim do ano passado, publicada pela Springer Nature, e recentemente ganhou tradução para o português, feita pelos próprios autores.
A estrutura é bem linear e direta, perfeita para um livro que tem um público-alvo mais geral (apesar da profusão de citações que lembram publicações acadêmicas). Começa tratando da prevalência, em diversas épocas e civilizações, bem como na filosofia, da crença na vida após a morte – o termo mais frequente ao longo do livro será “sobrevivência da consciência”, e os autores usarão palavras como “alma”, “mente”, “espírito”, “consciência” e “personalidade” para descrever a mesma realidade, o que ajuda a não nos perdermos em detalhismos desnecessários para o objetivo do livro. Mas, antes que alguém acuse um argumentum ad populum, os próprios autores lembram: não é porque muita gente crê em algo que esse algo será verdadeiro. E é aí que a coisa começa a ficar boa.
A seriedade dos autores se revela no fato de não forçarem a barra para fazer as pesquisas dizerem mais do que elas dizem
Depois de oferecer uma contestação breve, mas sólida, dos argumentos fisicalistas – o fisicalismo é o cientificismo reducionista e materialista aplicado à neurociência, que se revela em afirmações como “o cérebro produz a mente” e faz seus defensores perderem caixas de vinho –, os autores explicam que tipo de fenômeno poderia ser considerado, do ponto de vista científico, uma evidência aceitável para a sobrevivência da consciência; e listam alguns desses fenômenos, divididos em três grandes grupos: mediunidade (com destaque para os casos da norte-americana Leonora Piper e do brasileiro Chico Xavier), experiências de quase-morte e fora do corpo, e supostas memórias de vidas passadas. Por fim, analisam outras hipóteses que poderiam explicar tais fenômenos, mostram as implicações de cada hipótese e oferecem uma crítica ao que chamam de “barreiras culturais” que impedem um “exame imparcial” da evidência para a vida após a morte.
A seriedade com que os autores tratam o tema pode ser vista no grau de assertividade que vão oferecendo ao longo do livro – mais especificamente, no fato de não forçarem a barra para fazer as pesquisas dizerem mais do que elas dizem. O trecho mais enfático está no fim, quando os autores afirmam que “é difícil resistir à conclusão de que ele [o corpo de evidências] sugere que a sobrevivência da consciência humana após a morte corporal é um fato da natureza” (destaque dos autores, p. 84). Mas, de resto, ninguém “crava” nada: a sobrevivência é descrita como “hipótese explicativa mais razoável e empiricamente sustentada” (p. 51), “hipótese mais racional e harmoniosa” (p. 67) e “explicação mais simples e direta” (p. 80); ou que nos casos de alegadas memórias de vidas passadas “a hipótese da reencarnação é única por seu valor explicativo” (p. 66). Em outras palavras, é como se dissessem: o fenômeno está aí; descartando fraude, as explicações possíveis são tais, tais e tais, e dentre elas a mais provável é esta aqui, por esses e aqueles motivos. Os autores cuidam, inclusive, de deixar claro o que não sabem, como ao dizer que “ainda não conseguimos definir se, em última análise, somos compostos de apenas uma substância (monismo), duas substâncias (dualismo) ou mais. Trata-se de uma questão mais metafísica do que empírica. Além disso, os mecanismos pelos quais esses dois aspectos do ser humano [corpo e alma/mente/espírito] interagem ainda não são claros” (p. 68).
Evidentemente, como sou católico, não creio que haja nem mediunidade verdadeira nem reencarnação; minha tendência, neste caso, é a seguinte: sendo reais os fenômenos descritos e não havendo fraude envolvida (o verbete da Wikipedia sobre Piper lhe é bem desfavorável), não é o caso de se descartar a evidência (aprendemos isso com São Roberto Belarmino, certo?), e sim de afirmar que esses fenômenos haverão de ter alguma outra explicação não fisicalista (afinal, não sou materialista), mas que não figure entre as mais prováveis. Os autores certamente me citariam como exemplo do “dogmatismo religioso” que “pode acrescentar muito ao cientificismo materialista em termos de oposição à pesquisa em sobrevivência da personalidade humana (por exemplo, através da negação sistemática da reencarnação ou da mediunidade entre muitos cristãos)” (p. 81). Aceito a parte da “negação sistemática”, mas não me oponho à pesquisa; é assunto que discutiria muito amigavelmente com os autores, acompanhado de um bom vinho ou cerveja (e aqui segue um disclaimer, pois me dou muito bem com Coelho e Moreira-Almeida, que me presenteou com o meu exemplar de Ciência da vida após a morte e a quem agradeci na introdução do meu próprio livro de entrevistas recém-lançado).
Também fiquei um pouco incomodado com o parágrafo sobre reencarnação e cristianismo na página 58; embora certamente haja teólogos reencarnacionistas nas principais confissões cristãs, tanto que o livro cita um luterano e um anglicano, a fé na reencarnação nunca chegou a ser algo majoritário, nem endossado pelas cúpulas das igrejas cristãs protestantes, ortodoxas ou católica. Existe imensa exegese bíblica sobre o diálogo entre Cristo e Nicodemos referir-se não à reencarnação, mas ao batismo – tanto que a expressão original grega significa “nascer do alto”, e não “nascer de novo”. Neste sentido, eu recomendo o monumental trabalho de dom Boaventura Kloppenburg, que gastou décadas pesquisando a doutrina espírita e comparando-a com o texto dos Evangelhos.
Dito isso, ninguém precisa comprar o “pacote completo” (incluindo mediunidade e reencarnação) para concordar que Ciência da vida após a morte é uma obra muito instigante e que presta um grande serviço ao oferecer uma crítica à visão fisicalista das relações entre mente e cérebro, com analogias bem montadas (a da televisão é excelente) e acessível ao leitor não especializado. A pergunta sobre o que vem depois da morte é uma das curiosidades fundamentais do ser humano (até o Monty Python já tentou responder a essa pergunta) e, se a ciência pode dizer alguma coisa que seja sobre isso, não pode ser o dogmatismo materialista a impedir pesquisa bem feita – por mais que certeza, certeza absoluta, só tenhamos mesmo quando estivermos lá do outro lado.
Ficou interessado no livro? Gostaria de conversar com os autores?
Algumas cidades brasileiras já tiveram lançamentos de Ciência da vida após a morte, e ainda há outras no roteiro. Todos os eventos listados abaixo são gratuitos, não existem inscrição prévia e têm entrada aberta ao público geral, mesmo quando ocorrem dentro de universidades. Será possível adquirir o livro, com autógrafo e dedicatória dos autores. Confira aí:
Curitiba: 6 de setembro, das 9h às 10h30, no Auditório Professor Alcides Munhoz da Cunha, Prédio Histórico da UFPR (Praça Santos Andrade, 50, Sala 200, Ala do Direito). A moderação será do professor Adriano Holanda (Psicologia/UFPR).
Brasília: 12 de setembro, das 9h às 10h30. Aula Magna do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília, no auditório do Bloco K, Câmpus I da UCB (QS 07, Lote 01, Taguatinga Sul). A moderação será da professora Marta Helena Freitas (Psicologia/UCB).
Campinas: 21 de setembro, das 11h15 às 12h30, no Salão Nobre da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Rua Albert Sabin, s/n., Portão FCM01). A moderação será do professor Paulo Dalgalarrondo (Psiquiatria/Unicamp).
São Paulo: 22 de setembro, das 13h30 às 14h30, no anfiteatro do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP (Rua Dr. Ovídio Pires de Campos, 785). A moderação será do professor Wagner Gattaz (Psiquiatria/USP) e o lançamento ocorre dentro do evento IPq Portas Abertas.
Salvador: 29 de setembro, às 9h30, no Auditório Ophélia Gaudenzi, 3.º andar do Instituto de Ciências da Saúde (ICS-UFBA: Avenida Reitor Miguel Calmon, s/n.º, câmpus Vale do Canela). A moderação será do professor Marcus Welby Borges Oliveira e o evento tem apoio da Rede Universitária de Pesquisas em Espiritualidade (Reupe).
Se sua cidade ainda não está na lista (acompanhe as páginas de Moreira-Almeida no Facebook e no Instagram para saber de eventos que forem marcados depois da publicação desta coluna), ou se está e você não terá como ir aos lançamentos, os autores participarão de um simpósio on-line no próximo sábado, dia 29 de julho, das 8h30 às 13h30. Além deles, também haverá a participação do norte-americano Robert Cloninger (que escreveu o prefácio do livro), de Henrique Ribeiro e Bruno Mosqueiro.
ICFé da PUCPR oferece gratuitamente para download livro de Guy Consolmagno
O Instituto Ciência e Fé da PUCPR está lançando o ebook Vida Inteligente no Universo?: A Fé Católica e a Busca por Vida Extraterrestre Inteligente, escrito por Guy Consolmagno, diretor do Observatório Vaticano. O livro tem prefácio do Nobel de Física John Mather – que participará, em setembro, de um evento do ICFé – e pode ser baixado gratuitamente para Kindle, Google Play, Apple Books e Kobo.
Falando em Guy Consolmagno e em livros...
Consolmagno é um dos entrevistados de A razão diante do enigma da existência, livro que reúne quase 30 entrevistas feitas nesses 15 anos de Tubo de Ensaio. Também estão lá Marcelo Gleiser, o cardeal Gianfranco Ravasi, o padre George Coyne (um dos antecessores de Consolmagno na direção do Observatório Vaticano), Jennifer Wiseman, William Lane Craig e vários outros religiosos, cientistas, historiadores, teólogos e filósofos.