O blog volta hoje de um recesso que combinou as férias do blogueiro e a loucura da Copa do Mundo em Curitiba. E retomamos de onde paramos: o evento de ciência e fé organizado pela comunidade evangélica Sara Nossa Terra, que ocorreu em São Paulo de 1.º a 3 de maio, bem no início das minhas férias. Foi uma grande oportunidade de reunir gente muito boa, dos mais diversos campos, e sou grato ao bispo Robson Rodovalho por ter me convidado para colaborar com a organização do evento, inclusive sugerindo vários dos nomes que estiveram presentes dando palestras. No fim, acabei atuando também como um mestre de cerimônias um tanto desengonçado, o que me deu oportunidade de interagir ainda mais com os palestrantes.
O público presente ao auditório Elis Regina, no Anhembi, era majoritariamente de membros da Sara Nossa Terra, sem falar nos grupos de vários cantos do país que acompanharam o evento pela transmissão on-line, mas os preletores eram das mais diferentes confissões religiosas. Infelizmente não pudemos contar com o padre Lucio Florio, que precisou ficar em Buenos Aires por questões pessoais; também não foi possível assistir à palestra do professor Allan Chapman, da Universidade de Oxford: o vídeo que ele enviaria era grande demais e não foi possível baixá-lo a tempo para ser exibido no evento. Essa foi uma das pequenas lições práticas que aprendemos quando se organiza pela primeira vez algo tão grande.
O primeiro dia foi dedicado mais a uma introdução da relação entre ciência e fé, com palestras dos professores Antonio Delson e Francisco Borba. Pelo que pude sentir, a audiência ficou especialmente encantada com a palestra de Borba, que falou muito sobre sabedoria e ciência, mostrando como o conhecimento científico se relaciona (ou, às vezes, não se relaciona) com contextos mais amplos de compreensão do mundo. Já o professor Delson tratou de mostrar que o cristão não tem motivos para temer a ciência. Ele, como membro da Sara Nossa Terra, conhecia seu público melhor que todos os outros palestrantes, e achei que sua introdução veio bem a calhar. Apesar de essa comunidade evangélica ter um líder que foi professor universitário de Física, e que já escreveu sobre ciência e fé, pude perceber, ao longo do evento, que ainda existe uma certa desconfiança de fundo em relação à ciência, especialmente analisando várias das perguntas que foram feitas a todos os palestrantes.
Foi a partir do segundo dia que entramos nos temas específicos. Cícero Urban, professor da PUCPR e da Universidade Positivo, capturou a atenção da audiência trazendo diversos estudos de caso que envolvem decisões bioéticas. Mostrou as últimas novidades das pesquisas com células-tronco, tratou de situações como aborto, pesquisas com embriões, temas que estão circulando por aí e sobre os quais nem sempre as pessoas têm a melhor informação para formar sua opinião.
Mas, acho eu — e creio que a maioria do público também achou –, os grandes nomes do evento foram Gerald Schroder e Karl Giberson. Os leitores do blog já conhecem Giberson, um dos principais defensores da conciliação entre o Cristianismo e a teoria da evolução entre os evangélicos norte-americanos. Giberson foi por muito tempo ligado à Fundação BioLogos, que chegou a presidir por algum tempo, e trouxe para o público evangélico brasileiro um alerta, mostrando aos participantes do evento como o criacionismo de Terra jovem havia ganho espaço nos Estados Unidos. Ele apresentou diversas evidências em favor da evolução e mostrou como um cristão pode aceitar a teoria de Darwin sem problema algum.
Schröder, um astrofísico judeu ortodoxo com jeitão de avô simpático, conquistou o público tratando de questões relacionadas ao início do universo, ao Big Bang e aos “seis dias” da criação. Mesmo com minhas anotações, eu realmente gostaria de ver mais uma vez suas palestras (tanto ele quanto Giberson falaram no evento mais de uma vez) e ler seu livro Genesis and the Big Bang para ter certeza de que entendi bem o que ele propõe: que os seis dias da criação são, sim, literais, no sentido de seis períodos de 24 horas, mas que também se desenrolaram no período de 13 bilhões de anos que entendemos hoje como a idade do universo. Se eu realmente entendi direito (é preciso fazer essa ressalva), Schröder afirma que, nos primórdios do universo, o tempo passava muito mais devagar e foi “acelerando” à medida que o universo ia desacelerando e se resfriando. Assim, na verdade o universo tem 13 bilhões de anos “dos nossos”, ou seja, na “velocidade” com que o tempo passa hoje, mas um observador que estivesse lá no início perceberia o tempo de outra forma.
Um momento especialmente incrível foi a mesa-redonda em que Giberson e Schröder puderam discutir alguns desses pontos. Schröder, por exemplo, fez algumas críticas à evolução, enquanto Giberson discordou da noção de que a Bíblia contivesse alguns “códigos escondidos” que só seriam acessíveis ao homem moderno, à medida que a ciência avançasse. Todo o evento foi registrado em vídeo, mas até onde eu sei as imagens ainda não estão disponíveis (até porque, se não me engano, é preciso legendar todas as palestras de Giberson e Schröder, que falaram em inglês). O vídeo de Allan Chapman, que não foi exibido no evento, também estaria disponível. Tanto Giberson quanto Schröder deram entrevistas ao Tubo de Ensaio. Em breve elas serão publicadas aqui.
Rodovalho já deixou meio subentendido que esse foi apenas o primeiro evento do gênero; haverá outros, e inclusive já há negociações para futuras edições. Minha opinião é de que, daqui em diante, será preciso escolher um rumo, que influenciará inclusive a definição dos palestrantes e do público-alvo. Uma opção é direcionar os eventos ao público acadêmico, para promover um debate frutífero e profundo sobre a relação entre ciência e fé. Nesse caso, a divulgação teria de ser feita prioritariamente no meio universitário, e não tanto nas igrejas (embora essas não devessem ficar de fora do público-alvo), e considerar que parte do público seria formado por pessoas não religiosas, ou mesmo hostis à religião, e saber lidar com isso. Os palestrantes também poderiam incluir pessoas não religiosas.
Outra opção é direcionar o evento de vez ao público evangélico/cristão/religioso, para mostrar com muita ênfase que o cristão, ou a pessoa de fé, não tem por que temer a ciência, mostrando como conciliar as descobertas científicas com as escrituras sagradas, derrubar mitos, evitar polêmicas desnecessárias, prevenir o avanço da pseudociência (como o criacionismo de Terra jovem) entre os cristãos. Nesse caso, claro que a prioridade é divulgar o evento nas igrejas, e trazer palestrantes que combinem profundo conhecimento científico e a “fé sólida e adulta” de que costumava falar o papa Bento XVI. Em um evento desse tipo teriam lugar inclusive testemunhos como o que o professor Delson deu durante sua palestra.
Esses são dois caminhos bem distintos e igualmente nobres, e que poderiam inclusive nortear eventos diferentes, por exemplo em um ano buscando mais o público religioso, e em outro o público acadêmico. Só acho que seria mais complicado misturar os dois objetivos em um único evento. Mas é uma decisão que não cabe a mim, e sim aos organizadores, que certamente saberão o que fazer.
E logo teremos mais!
A turma do Instituto Faraday já está com passagem marcada para o Brasil. Em outubro, teremos pelo menos um curso de quatro dias. Pelo que apurei até o momento, infelizmente motivos de calendário impediram que houvesse um curso em Curitiba, mas não está descartada pelo menos uma conferência em nossa cidade.
Aviso 1: A viagem e a hospedagem do blogueiro para o congresso citado neste post foram bancadas pela Sara Nossa Terra.
Aviso 2: O Instituto Faraday, mencionado neste post, concedeu uma bolsa para o blogueiro fazer um curso sobre ciência e religião em Cambridge em julho de 2011.
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