CARREGANDO :)

O Vaticano divulgou hoje a exortação apostólica Evangelii Gaudium (enquanto escrevo, o site do Vaticano ainda não tem a versão em português, mas a íntegra está no site da Rádio Vaticana). A imprensa está fazendo um carnaval indevido em cima do texto. Há quem diga que com o documento o papa já está promovendo a reforma da Cúria (não está). Já vi duas matérias afirmando que o papa faz uma crítica dura ao capitalismo (não faz; o que ele critica é a idolatria ao dinheiro, o que é um pouco diferente. Aliás, na exortação as palavras “capitalismo” ou “capitalista” não aparecem uma única vez). Já vi comentaristas deixando subentendido que deve vir por aí alguma mudança, talvez a comunhão aos divorciados que assumem um novo casamento civil (não tem nada disso também). Como sabemos, é especialidade dos meus colegas tirar frases do contexto para que se encaixem em suas próprias agendas sobre o que a Igreja deveria ser, na concepção dessas pessoas.

A exortação apostólica é um longo documento no qual o papa lança seu ponto de vista sobre muita coisa. O maior destaque é dado à maneira como a Igreja comunica sua mensagem, por palavras e ações, mas também há considerações de cunho político, econômico e cultural. Sobra um pouco também para o nosso tema. No capítulo sobre o anúncio do Evangelho, por exemplo, o papa dedica três parágrafos ao tema “Cultura, pensamento e educação”. Destaco o parágrafo 132:

Publicidade

132. O anúncio às culturas implica também um anúncio às culturas profissionais, científicas e acadêmicas. É o encontro entre a fé, a razão e as ciências, que visa desenvolver um novo discurso sobre a credibilidade, uma apologética original que ajude a criar as predisposições para que o Evangelho seja escutado por todos. Quando algumas categorias da razão e das ciências são acolhidas no anúncio da mensagem, tais categorias tornam-se instrumentos de evangelização; é a água transformada em vinho. É aquilo que, uma vez assumido, não só é redimido, mas torna-se instrumento do Espírito para iluminar e renovar o mundo.

Os críticos podem ver uma tentativa de instrumentalizar as ciências, mas o que o papa está pedindo é justamente o encontro. Também o mundo das ciências pode e deve ser evangelizado, e isso não significa anular a ciência em nome da fé, ou vice-versa. É uma evangelização que pressupõe o diálogo adulto entre esses dois campos. Por isso o papa diz, no parágrafo seguinte, que “(a) Igreja, comprometida na evangelização, aprecia e encoraja o carisma dos teólogos e o seu esforço na investigação teológica, que promove o diálogo com o mundo da cultura e da ciência. Faço apelo aos teólogos para que cumpram este serviço como parte da missão salvífica da Igreja. Mas, para isso, é necessário que tenham a peito a finalidade evangelizadora da Igreja e da própria teologia, e não se contentem com uma teologia de gabinete.”

Mas o principal está no capítulo sobre “a dimensão social da evangelização”, que traz dois parágrafos sobre “O diálogo entre a fé, a razão e as ciências”. Confiram (os negritos são meus):
242. O diálogo entre ciência e fé também faz parte da ação evangelizadora que favorece a paz. O cientificismo e o positivismo recusam-se a “admitir, como válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências positivas”. A Igreja propõe outro caminho, que exige uma síntese entre um uso responsável das metodologias próprias das ciências empíricas e os outros saberes como a filosofia, a teologia, e a própria fé que eleva o ser humano até ao mistério que transcende a natureza e a inteligência humana. A fé não tem medo da razão; pelo contrário, procura-a e tem confiança nela, porque “a luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus”, e não se podem contradizer entre si. A evangelização está atenta aos progressos científicos para os iluminar com a luz da fé e da lei natural, tendo em vista procurar que sempre respeitem a centralidade e o valor supremo da pessoa humana em todas as fases da sua existência. Toda a sociedade pode ser enriquecida através deste diálogo que abre novos horizontes ao pensamento e amplia as possibilidades da razão. Também este é um caminho de harmonia e pacificação.

243. A Igreja não pretende deter o progresso admirável das ciências. Pelo contrário, alegra-se e inclusivamente desfruta reconhecendo o enorme potencial que Deus deu à mente humana. Quando o progresso das ciências, mantendo-se com rigor acadêmico no campo do seu objeto específico, torna evidente uma determinada conclusão que a razão não pode negar, a fé não a contradiz. Nem os crentes podem pretender que uma opinião científica que lhes agrada – e que nem sequer foi suficientemente comprovada – adquira o peso dum dogma de fé. Em certas ocasiões, porém, alguns cientistas vão mais além do objeto formal da sua disciplina e exageram com afirmações ou conclusões que extravasam o campo da própria ciência. Neste caso, não é a razão que se propõe, mas uma determinada ideologia que fecha o caminho a um diálogo autêntico, pacífico e frutuoso.

A respeito desse diálogo, o papa acrescenta, mais adiante:

Publicidade

257. Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles que, não se reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa, buscam sinceramente a verdade, a bondade e a beleza, que, para nós, têm a sua máxima expressão e a sua fonte em Deus. Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade humana, na construção duma convivência pacífica entre os povos e na guarda da criação. Um espaço peculiar é o dos chamados novos Areópagos, como o “Átrio dos Gentios”, onde “crentes e não crentes podem dialogar sobre os temas fundamentais da ética, da arte e da ciência, e sobre a busca da transcendência”. Também este é um caminho de paz para o nosso mundo ferido.

Por fim, não podia faltar a menção a um tema muito caro ao papa, o da preservação ambiental. É significativo que o parágrafo 215 venha depois daqueles em que Francisco faz uma dura condenação do aborto, mostrando, na esteira de seus predecessores, que há uma hierarquia nas preocupações.

215. Há outros seres frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à mercê dos interesses econômicos ou dum uso indiscriminado. Refiro-me ao conjunto da criação. Nós, os seres humanos, não somos meramente beneficiários, mas guardiões das outras criaturas. Pela nossa realidade corpórea, Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação. Não deixemos que, à nossa passagem, fiquem sinais de destruição e de morte que afetem a nossa vida e a das gerações futuras. Neste sentido, faço meu o expressivo e profético lamento que, já há vários anos, formularam os bispos das Filipinas: “Uma incrível variedade de insetos vivia no bosque; e estavam ocupados com todo o tipo de tarefas. (…) Os pássaros voavam pelo ar, as suas penas brilhantes e os seus variados gorjeios acrescentavam cor e melodia ao verde dos bosques. (…) Deus quis que esta terra fosse para nós, suas criaturas especiais, mas não para a podermos destruir ou transformar num baldio. (…) Depois de uma única noite de chuva, observa os rios de castanho-chocolate da tua localidade e lembra-te que estão a arrastar o sangue vivo da terra para o mar. (…) Como poderão os peixes nadar em esgotos como o Rio Pasig e muitos outros rios que poluímos? Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?”

Enfim, parece-me um texto excepcional, para ser lido com muita atenção. Eu mesmo ainda não consegui lê-lo todo, mas certamente o farei em breve.

——

Publicidade

——

Você pode seguir o Tubo de Ensaio no Twitter e curtir o blog no Facebook!