Nada como um feriadão para avançarmos na leitura, e este último me ajudou a terminar Perelandra, o segundo livro da Trilogia Cósmica do britânico C.S. Lewis. Depois de ir a Marte contra sua vontade em Além do planeta silencioso, o primeiro livro da série, o filólogo Elwin Ransom é convocado pelo Oyarsa de Malacandra para outra missão interplanetária, desta vez em Perelandra, que nós conhecemos como Vênus. Fazer o quê lá? Por que ele? Ransom não sabe; só sabe que tem de ir.
Perelandra é um mundo formado basicamente por um grande oceano dourado que se movimentava em ondas gigantes, com ilhas flutuantes e um céu igualmente dourado, “como o fundo de um quadro medieval” (p. 39), que bloqueava a visão das estrelas. Por algum tempo, Ransom acha que se tratava de um mundo sem habitantes racionais, até que encontra a Dama Verde: uma mulher, humana como ele, mas, como o nome diz, verde. Aí virá a primeira grande novidade: em Malacandra, o filólogo tinha encontrado seres racionais de formatos bem diversos, mas Marte é um “mundo velho”; depois que o Verbo se fez homem na Terra, não há outra forma possível para os habitantes dos “mundos novos”, dos quais o primeiro a “despertar” é Perelandra. A Dama Verde é a primeira de sua espécie; há um companheiro, o Rei, do qual ela se perdeu. Ela vive uma vida de tranquilidade e harmonia perfeita com os demais seres e com Maleldil, o Criador, com quem ela conversa diretamente.
Mas a tranquilidade de Perelandra e das conversas entre Ransom e a Dama Verde será destruída pela chegada de uma espaçonave, com um único tripulante: o físico Weston, o vilão do primeiro livro, e que continua desprezível, armado e perigoso. Com uma agravante: desta vez ele é um mero veículo para o Tentador. O demônio, usando a carcaça de Weston, buscará convencer a Dama Verde a desobedecer Maleldil, que havia estabelecido uma única proibição ao primeiro casal perelandriano, a de não dormir na Terra Fixa. A insinuação é sutil: primeiro, o tentador diz que não é proibido pensar em como seria dormir na Terra Fixa; depois, dirá que Maleldil havia criado uma regra pouco razoável apenas porque estaria desejando a desobediência, como demonstração de que a Dama Verde estaria se tornando “uma mulher completa” (p. 136), autônoma, e que essa seria a vontade dEle. “Rebeldia é obediência”: o diabo é o pai da novilíngua.
Ransom finalmente compreende o que tinha sido mandado para fazer em Vênus: impedir uma repetição do Pecado Original cometido por Adão e Eva na Terra. Mas como ele, uma criatura falível, conseguirá enfrentar o Pai da Mentira em seu próprio campo? A verdade e os argumentos racionais bastarão para vencer uma disputa intelectual contra uma inteligência perfeita e sem o menor compromisso com coerência ou honestidade?
Em Perelandra, o cientificismo não chega a ser o grande “antagonista intelectual” que havia sido em Além do planeta silencioso, mas é ele que continua movendo Weston, ainda que com uma roupagem um pouco diferente. Antes que o demônio tome de vez o seu corpo, o físico conta a Ransom que, depois de retornar de Marte, passara a prestar mais atenção à biologia e tornara-se “um adepto convicto da evolução emergente” (p. 116). Que raios é isso? “Tudo é um. A matéria da mente, o dinamismo inconscientemente determinado está presente desde os primórdios (…) O Homem em si não é nada. Os movimentos de avanço da Vida a espiritualidade crescente, são tudo”, diz. Há uma “intencionalidade cega e muda a lançar-se para o alto” em um “majestoso espetáculo”. Mas esse “espírito” que Weston diz ser a meta a atingir não tem nada a ver com o Deus pessoal dos cristãos: “o turbilhão final de atividade autopensante, originadora de si mesma” é “uma Força” que escolheu a ele, Weston. Deus, demônio? Todos “imagens da mesma Força”, diz o físico.
Como toda essa conversa, cheia de alusões a espíritos e forças, pode ser cientificista? Acontece que todos os principais elementos do cientificismo continuam ali, como a crença no progresso irrefreável trazido pela ciência e o desprezo completo pela reflexão ética. “O mundo dá saltos adiante através de grandes homens, e a grandeza sempre transcende o mero moralismo” (p. 122), diz Weston, depois de já ter afirmado que a Força fez dele o maior cientista que o mundo já produziu justamente para que ele fosse o agente desse “progresso”. O físico ainda acrescenta que, se a tal Força o requisitasse, ele mataria Ransom, “venderia a Inglaterra aos alemães” (Perelandra foi publicado durante a Segunda Guerra Mundial) ou “publicaria mentiras como pesquisa séria em um periódico científico”.
O Paulo Cruz havia me dito que Perelandra é poesia pura, e ele tem toda a razão. Toda a descrição das ilhas flutuantes que Ransom explora antes de seu primeiro encontro com a Dama Verde (fico me perguntando se Lewis não tinha um quê de Hieronymus Bosch ao “criar” esse jardim de delícias); os diálogos do filólogo com sua anfitriã venusiana; seu encontro com a Voz no momento de maior angústia, em que Ransom sente a derrota iminente e parece não saber mais o que fazer; e, especialmente, o canto dos eldila ao fim do livro, um hino digno de um místico de primeira linha, cheio de trechos admiráveis sobre a criação e o seu propósito (“Tudo o que está feito parece carecer de plano à mente entrevada, porque existem mais planos do que ela procurava ver”, p. 296): são todos trechos absolutamente sublimes esteticamente e, ao mesmo tempo, cheios de profundidade teológica que fazem de Perelandra um livro bem mais “denso” que Além do planeta silencioso, com tamanha riqueza e variedade de temas que essa resenha, mais centrada na questão do cientificismo, não é capaz de fazer justiça à obra de Lewis.
O próximo passo é ver com termina a saga de Ransom em Uma força medonha, o volume final da trilogia.
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