E terminamos a saga de Elwin Ransom, o protagonista da Trilogia Cósmica de C.S. Lewis. Enquanto nos livros anteriores o filólogo viajava a Marte e Vênus, em Uma força medonha a ação toda se desenrola por aqui mesmo. Mais especificamente, em uma cidadezinha inglesa fictícia chamada Edgestow, que tem uma universidade ao estilo de Oxford e Cambridge; nela, e em seus arredores, Lewis constrói a sua distopia de um mundo governado por cientistas niilistas.
Edgestow é escolhida para sediar as instalações definitivas do Instituto Nacional de Experimentos Coordenados (Inec; o acrônimo na versão original, N.I.C.E., tem um sugestivo duplo sentido), “o primeiro fruto daquela fusão construtiva entre o Estado e a Ciência, na qual tanta gente pensante baseia suas esperanças de um mundo melhor” (p. 15). Sem restrições burocráticas ou orçamentárias, o Inec estende seus tentáculos sobre a cidade, a ponto de ter sua própria polícia, poder desapropriar imóveis à vontade e realizar outras atividades que seriam monopólio estatal. Para conquistar mais poder, o Inec não hesita em semear confusão em Edgestow, para depois se apresentar como restaurador da ordem. Assassinato e chantagem também fazem parte da ordem do dia.
E para que tanto poder? Lorde Feverstone (ou Dick Devine, um dos sequestradores de Ransom em Além do planeta silencioso) explica a Mark Studdock, sociólogo e pesquisador da Universidade de Edgestow, que Devine quer recrutar para o Inec: “Se for dada liberdade à ciência, ela poderá dominar a espécie humana e recondicioná-la: tornar o homem um animal realmente eficiente” (p. 44). Por que meios? “Esterilização dos inaptos, extermínio de raças atrasadas, reprodução seletiva. Depois, educação de verdade, incluindo a pré-natal”, que “torna o paciente infalivelmente o que ela quer; não importa o que o paciente ou seus pais tentem fazer a respeito” (p. 46). O Inec trabalha “para a conquista da morte; ou para a conquista da vida orgânica”. É a ciência sem ética para a construção de um Novo Homem, “o homem que não morrerá, o homem artificial, livre da natureza” (p. 247), “que finalmente ascenderá ao trono do universo” (p. 250). Para os membros do Inec, “toda a moralidade era apenas um subproduto subjetivo das situações físicas e econômicas dos homens” (p. 287); sentimentos e convicções não passavam de reações químicas que era preciso domar ou eliminar; o resultado final seria o Homem Objetivo e Tecnocrático (p. 368). Evidentemente, para se construir esse novo homem abstrato, seria preciso eliminar milhares, milhões, bilhões de homens reais, mas isso não era problema algum.
A resistência a esse projeto de poder sem limites cientificista reside em uma casa no alto de um monte, St. Anne’s on the Hill. Ali, um pequeno grupo se reúne ao redor de um dos poucos homens em todo o mundo que têm plena consciência do perigo que o Inec representa, e da verdadeira natureza do instituto. Quando chegar o momento certo, eles sairão em batalha, mas não uma batalha qualquer, e sim um novo capítulo da luta entre o Bem e o Mal.
O próprio Lewis afirma, no prefácio, que os temas principais de Uma força medonha também estão em A abolição do homem, publicado dois anos antes (e que ainda não li, shame on me), e também enxerguei ali um pouquinho das ideias sobre o amor humano que apareceriam, mais de uma década depois, em Os quatro amores. Do ponto de vista da trama, Lewis avisa que fez um crossover com a obra de seu grande amigo J.R.R. Tolkien; e, sem avisar, também incluiu na trama temas do ciclo arturiano. Mas o conhecimento prévio sobre Númenor ou as lendas do Rei Artur não é requisito para nada; no máximo, o leitor vai deixar de capturar uma ou outra referência lateral (foi o meu caso), mas o que for essencial para entender a história de Uma força medonha estará explicado ao longo do livro.
Lendo o livro, vi um paralelo com outra distopia de que gosto muito, O Senhor do Mundo, de Robert Hugh Benson, escrita em 1908 e que conta a história do surgimento de um governo global poderoso, ao qual apenas uma Igreja Católica perseguida se opõe. Ambos os livros têm um casal que é o fio condutor da história, mas com algumas diferenças. Enquanto Oliver Brand, o deputado trabalhista da obra de Benson, é um ardoroso entusiasta das ideias de Julian Felsenburgh, que se tornará o grande antagonista da trama, Mark Studdock não é exatamente um homem mau: ele é mais um fraco vaidoso, interessado em fazer parte de círculos restritos e poderosos; uma vez dentro deles, fará o que for preciso para agradar e se manter lá. E, nos dois livros, são as mulheres que percebem que há alguma coisa profundamente errada; mas, enquanto Mabel Brand reage de uma forma bastante apática, Jane Studdock vai se envolver ativamente na batalha.
Quando lemos distopias, gostamos de ver como os autores são capazes de enxergar o futuro não apenas do ponto de vista tecnológico, mas (principalmente, no meu caso) do ponto de vista moral, antecipando as loucuras que tomam a sociedade moderna. O Senhor do Mundo, por exemplo, tem transporte aéreo de passageiros, armas de destruição em massa e a aceitação social da eutanásia, a ponto de haver sua institucionalização. Mas Uma força medonha não me parece tanto uma distopia desse gênero. Isso porque as ideias que Lewis está criticando, e que movem o Inec, já existiam em seu tempo, e com influência nada desprezível. “As ciências físicas, boas e inocentes em si, já tinham, mesmo na vida de Ransom, começando a ser deturpadas”, conta o narrador (p. 286). E Arthur Denniston, um dos membros da resistência, questiona: “havia uma única doutrina posta em prática em Belbury que não tivesse sido pregada por algum palestrante em Edgestow?” (p. 539). Talvez algum aspecto do que hoje conhecemos como transumanismo só existisse na imaginação do autor, mas o grosso da amoralidade do Inec e seus membros já estava presente, e aí chegamos ao centro da questão: Uma força medonha não é um alerta sobre o futuro, mas uma avaliação sobre o presente. E a avaliação é a de que o cientificismo não é meramente uma ideia errada ou perigosa, mas verdadeiramente demoníaca. O ódio ao ser humano e à criação como um todo demonstrado pelos personagens é, no fim das contas, o ódio ao Criador, ódio esse que só pode ter uma fonte. Lendo um pouco sobre a repercussão do livro quando do seu lançamento, descobri que houve críticas pela introdução do elemento sobrenatural na trama. Mas ele é essencial para a história; quem faz esse tipo de ressalva provavelmente não entendeu o que Lewis queria. Não estamos diante de uma ficção científica ou distopia “simples”, mas de um livro com fins apologéticos.
Espero que as resenhas tenham animado o leitor do blog a conhecer a Trilogia Cósmica (veja também as resenhas de Além do planeta silencioso e Perelandra) e entender um pouco as ideias que moveram C.S. Lewis ao construir as aventuras de Ransom. O cientificismo segue vivo e forte, e os alertas do grande escritor britânico, apesar de já terem 80 anos (Além do planeta silencioso foi publicado em abril de 1938), continuam atuais e necessários.
Pequeno merchan
Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.