Ainda no embalo do 90.º aniversário de nascimento de Joseph Ratzinger, o papa emérito Bento XVI, comemorado no mês passado, o blog traz um artigo de um convidado: Mariusz Biliniewicz leciona Teologia na Universidade de Notre Dame, na Austrália, e é um estudioso do pensamento do papa emérito, sendo autor de The Liturgical Vision of Pope Benedict XVI. Ele escreveu, especialmente para o Tubo de Ensaio, um texto analisando a visão de Ratzinger sobre a relação entre ciência e fé.
Ciência e fé no pensamento de Bento XVI
Mariusz Biliniewicz
A relação entre fé e ciência, no pensamento de Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI, é melhor compreendida dentro do contexto da forma como ele vê a relação entre fé e razão em geral. Essa relação, de acordo com Ratzinger, é fundada no conceito de λόγος (logos), encontrado tanto na filosofia grega pré-cristã como em uma de suas passagens favoritas do Novo Testamento: o início de seu Evangelho preferido, o de São João: “No princípio era o Verbo (logos), e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Ratzinger explica que o termo logos significa tanto “palavra/Verbo” quanto “razão”, e isso indica que uma das características mais importantes da fé cristã é o fato de ela ser razoável, acessível à razão. Isso não significa que a razão humana é capaz de penetrar até o mais profundo da fé cristã; isso seria confundir as duas realidades. O que isso significa é que a fé cristã deve sempre estar aberta ao encontro com a razão humana em todas as suas dimensões. Ou seja: em primeiro lugar, um diálogo da fé com a filosofia, mas não limitado a ela. Hoje, mais que nunca, também um diálogo com a ciência.
Diálogo significa parceria, troca mútua, mas também crítica construtiva. Ciência e fé têm suas respectivas áreas de competência que são obviamente diferentes, mas que ao mesmo tempo apresentam uma convergência. Esse encontro construtivo significa que a Igreja não pode aceitar automaticamente, sem refletir, tudo que a “razão secular” tenha a dizer, assim como tudo o que a ciência contemporânea pode fazer. Pelo contrário: Ratzinger jamais se cansa de nos lembrar que, enquanto a ciência precisa gozar da liberdade de pesquisa e de uma necessária autonomia em seu trabalho, ela também precisa de um certo padrão universal pelo qual suas realizações podem ser medidas. Nem tudo que é cientificamente possível é moralmente aceitável, e nem toda rota tecnologicamente viável é digna de ser percorrida. A convicção crescente do caráter irrefreável do desenvolvimento científico deveria vir acompanhada da consciência crescente da necessidade de um princípio objetivo que ajudaria a distinguir o que é factível do que vale a pena fazer. Sem esse padrão, uma ciência completamente fora de controle, que só reconhece como limite a possibilidade técnica, pode se virar contra seu próprio agente, a pessoa humana. O desenvolvimento das armas nucleares de destruição em massa é, para Ratzinger, um exemplo eloquente de quão curta é a estrada entre o progresso sem amarras e a ameaça da aniquilação total da espécie humana.
Além disso, enquanto a ciência pode e deve nos ajudar a suprir as necessidades materiais mais importantes de nosso tempo, ela não pode “preencher totalmente todas as necessidades existenciais e espirituais do homem”. Essa realização, para a pessoa humana, só pode vir de fora; não podemos fazê-la nós mesmos, só podemos recebê-la. De acordo com Ratznger, a distinção importante entre o natural e o sobrenatural, o possível e o permissível, o ethos (fazer) e o logos (ser), exige um equilíbrio delicado entre a razão e a Revelação. Esse equilíbrio pode ser, e no passado o foi frequentemente, interrompido por exageros vindos de ambos os lados. Quando isso acontece, a humanidade é exposta ou a “patologias da religião” (fé cega, nada razoável, sem nenhum recurso à razão) ou a “patologias da razão” (uma urgência de progresso sem restrições e sem controles, independentemente do preço a pagar e sem interesse algum em considerações éticas).
De acordo com Ratzinger, uma reflexão sobre a dignidade humana e o bem comum, movida pela razão, pode levar à descoberta de um necessário padrão universal de conduta para a atividade científica. Mas essa reflexão é especialmente eficiente e frutuosa se iluminada pela fé. Como a fé cristã é construída sobre o princípio do logos, e como a abertura à reflexão pela razão está imersa nesta natureza, a fé cristã é provavelmente o ambiente mais amigável à ciência que um pesquisador pode encontrar.
A contribuição de Ratzinger para o desenvolvimento do diálogo entre ciência e fé é reconhecida não apenas nos círculos católicos, mas também fora deles. Um dos sinais mais notáveis deste reconhecimento foi sua nomeação como member associe stranger da Academia de Ciências Morais e Políticas do Institut de France, em 1992, quando ele foi convidado a assumir a cadeira que ficou vaga com a morte do dissidente soviético Andrei Sakharov.
O papado de Bento XVI também foi marcado por esse princípio teológico. De muitas formas, Bento foi um pontífice muito pró-ciência e apoiou pesquisas científicas com entusiasmo, interesse pessoal e com a bênção apostólica do sucessor de Pedro. Em 2012, ele constituiu a Fundação Ciência e Fé (Stoq), para dar sequência ao trabalho da iniciativa Science, Theology and the Ontological Quest, criada por João Paulo II em 2003. Em muitas ocasiões ele pediu uma “interação frutuosa entre compreensão e crença”. Ele enfatizava que, como tanto a ciência quanto a fé estão chamadas a promover o bem universal, a fé deveria encorajar a ciência a se empenhar em pesquisas que ajudassem a preservar a vida, a combater doenças, a eliminar a pobreza ou simplesmente a entender melhor como nosso planeta funciona e o que isso significa para nós, humanos. A fé não apenas não entra em conflito com a ciência, mas “coopera com ela, oferecendo critérios fundamentais para garantir que ela promova o bem comum”. Ao mesmo tempo, a fé pede que “a ciência desista daquelas iniciativas que, em oposição ao plano original de Deus, possam produzir efeitos que se voltem contra o próprio homem”. Bento promoveu a ideia da “unidade interna” entre ciência e fé, e expressou sua convicção de que há uma “necessidade urgente de diálogo e cooperação contínuos” entre ambas.
Não apenas “não há conflito entre a providência divina e o engenho humano”, mas o desenvolvimento da ciência, em si mesmo, poderia ser considerado parte da providência divina. Ainda mais: Bento defendeu que a atividade científica também é um caminho de santidade. Na catequese da audiência geral de 24 de março de 2010, ele citou Santo Alberto Magno como exemplo de um “santo cientista” e afirmou que “os homens de ciência podem percorrer, através da sua vocação para o estudo da natureza, um autêntico e fascinante percurso de santidade”. Pela observação e pelo estudo da criação divina, os olhos do cientista se voltam ao Criador cujo gênio artístico e criativo se torna mais e mais evidente ao pesquisador. Dessa forma, “o estudo científico transforma-se, então, num hino de louvor” e pode servir não apenas para satisfazer as necessidades naturais dos homens, mas também se tornar um primeiro passo no caminho para satisfazer as necessidades sobrenaturais.
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