O ano de 2022 terminou com a notícia que todos sabíamos ser inevitável mais cedo ou mais tarde, mas que ainda assim foi muito doloroso receber: a morte do papa emérito Bento XVI. Eu era fã dele e de seu trabalho desde antes de ele ser eleito para suceder João Paulo II, embora, dos muitos livros dele que tenho, a maioria esteja naquela categoria “tenho, mas ainda não li”. Estou convicto de que, mais cedo ou mais tarde, ele será não apenas canonizado como também declarado Doutor da Igreja.
No mesmo dia do falecimento de Bento XVI, o Vaticano divulgou seu “testamento espiritual”. É um texto curtinho, escrito em 2006, quando ele ainda tinha um ano e pouco de pontificado, mas que estava guardado para ser publicado após sua morte. E vejam vocês: de tanta coisa que ele poderia dizer sobre tantos assuntos, Bento escolheu dedicar parte de um dos seis parágrafos do “testamento” à relação entre ciência e fé!
“Com frequência, parece que a ciência – as ciências naturais de um lado e a pesquisa histórica (em particular a exegese da Sagrada Escritura) de outro – seja capaz de oferecer resultados irrefutáveis em contraste com a fé católica. Vi as transformações das ciências naturais desde tempos remotos e pude constatar como, ao contrário, tenham desaparecido aparentes certezas contra a fé, demonstrando-se ser não ciência, mas interpretações filosóficas somente aparentemente incumbentes à ciência; assim como, por outro lado, é no diálogo com as ciências naturais que também a fé aprendeu a compreender melhor o limite do alcance de suas afirmações e, portanto, a sua especificidade.”
Com esse trechinho tão curto quanto sábio, Bento XVI narra a derrocada da pretensão cientificista de ter todas as respostas, com a ciência suplantando e substituindo a religião, e exibe a nudez do rei: tal pretensão nem mesmo pode ser chamada de científica, não passando de “interpretações filosóficas somente aparentemente incumbentes à ciência”. Esta não é uma manifestação de desprezo pela ciência – pelo contrário, pois ele afirma logo depois que a ciência ajuda a fé a “compreender melhor o limite do alcance de suas afirmações”. O que Ratzinger critica é o triunfalismo de alguns cientistas que, extrapolando completamente o seu campo, defendem a ciência como única fonte válida de conhecimento.
“Vi as transformações das ciências naturais desde tempos remotos e pude constatar como, ao contrário, tenham desaparecido aparentes certezas contra a fé, demonstrando-se ser não ciência, mas interpretações filosóficas somente aparentemente incumbentes à ciência.”
Bento XVI, em seu “testamento espiritual”, divulgado após sua morte.
As palavras de Ratzinger são as palavras de um intelectual que tem muito claros os papéis exatos da ciência e da fé e de como ambas devem se relacionar. Isso fica explícito em tantas outras ocasiões nas quais Bento XVI se manifestou sobre esse tema, seja em homilias, audiências ou discursos à Pontifícia Academia de Ciências. Lembremos que foi Bento XVI, por exemplo, quem trouxe o projeto STOQ (Science, Theology and the Ontological Quest, uma iniciativa de universidades católicas de Roma) para dentro da estrutura do Vaticano. Foi ele quem idealizou o Átrio dos Gentios, uma instância de diálogo entre crentes e não crentes, e cuja edição curitibana trouxe o cardeal Gianfranco Ravasi e o cientista Marcelo Gleiser. E foi com o incentivo do papa que o Vaticano se aliou a uma empresa de terapia celular para pesquisar o uso de células-tronco adultas em tratamentos médicos. Não desprezemos o legado que Ratzinger/Bento XVI deixa no campo do saudável diálogo entre ciência e religião.
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