Outro dia apareceu, no meu feed de notícias do Facebook, um texto muito interessante, mas escrito em 2012. Não lembro agora se alguém o havia compartilhado na ocasião, ciente (ou não) de que se tratava de um artigo de cinco anos atrás, ou se alguma mágica do algoritmo da mídia social o trouxe até mim por algum outro meio. Mas, apesar de datado, continua sendo um artigo muito atual, e por isso o trago aqui: é sobre um tipo muito particular de “ficção científica”.
O motivo do texto era um segmento da cerimônia de abertura dos Jogos Paralímpicos de Londres, chamado “Gravity”. Assista no vídeo, a partir de 3h15min45s (o vídeo é a íntegra da cerimônia: um bônus para os que, como eu, gostam de esporte olímpico e paralímpico).
“Gravity” se apoia na conhecida história da maçã que teria dado a Isaac Newton a inspiração a respeito da lei da gravidade. E é aqui que começa nossa discussão. Philip Ball, na Aeon, argumenta que rasgar as vestes por causa desse segmento talvez seja demais, ainda que a história da maçã, na melhor das hipóteses, tenha sido, na realidade, bem diferente do que ficou gravado no senso comum. Mas há um problema de fundo: os cientistas, tão apegados ao rigor nas suas pesquisas, aparentemente abrem mão de toda essa exatidão quando se trata da história da ciência. Eles parecem não se importar muito ao ver as versões triunfarem sobre os fatos.
No caso de Newton e da maçã, Ball cita um biógrafo de Newton, para quem reduzir todo o esforço intelectual a respeito da gravidade ao insight do cientista ao ver uma fruta caindo cria uma distorção sobre a realidade da investigação científica (a palavra usada pelo biógrafo é mais forte: ele diz que a lei da gravitação universal é “vulgarizada” por essa anedota). Mas essa falta de rigor histórico não causa prejuízo apenas quando cria uma representação errada da proporção entre inspiração e transpiração exigida pelo trabalho científico. As histórias sobre a relação entre ciência e fé ao longo do tempo têm demonstrado essa mesma tendência de deixar a lenda prevalecer sobre a verdade, e a consequência é levar a opinião pública a concluir pela total inimizade entre religião e ciência. Ball cita especificamente os casos de Galileu e Giordano Bruno. Ball chegou a ser profético: um ano e meio depois de esse artigo ser publicado, o episódio inicial da nova versão de Cosmos reforçaria o mito sobre a condenação de Giordano Bruno pela Inquisição.
Sendo britânico, Ball lembra que houve, entre seus compatriotas, o que se chama hoje de Whig history, uma escola de historiografia ideologizada, que via a história como um percurso linear da humanidade, da escuridão para a luz. A historiografia moderna já abandonou essa abordagem há muito tempo, mas esse movimento de deixar certas lendas sobreviverem, firmes e fortes, demonstra um resquício das ideias que inspiraram esses historiadores do passado.
A questão toda se resume ao fato de que a história da ciência é suficientemente fascinante para precisar de mártires fabricados ou momentos de inspiração romanceados. Se os próprios cientistas se dessem conta disso e fossem tão rigorosos com a verdade histórica como são com o trabalho que desenvolvem em laboratório, evitaríamos muita fake history que corre por aí.
Pequeno merchan
Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro, e provavelmente haverá eventos de lançamento que anunciarei aqui no blog, assim que definirmos datas e locais.
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