Ontem o carteiro trouxe a edição de dezembro de 2023 da Zygon, uma das principais (se não for a principal) revistas acadêmicas de ciência e religião em todo o mundo, e este número começa com um artigo bastante interessante que investigou o efeito da religião e/ou espiritualidade sobre cientistas durante a pandemia de Covid-19. O quarteto de pesquisadores formado por Di Di (Universidade de Santa Clara), Stephen Cranney, Brandon Vaidyanathan (ambos da Universidade Católica da América) e Caitlin Anne Fitzgerald (da Universidade Notre Dame) entrevistou 3.442 físicos e biólogos de instituições nos Estados Unidos, Reino Unido, Índia e Itália entre maio e setembro de 2021.
As razões para a escolha são bastante interessantes. Embora haja muitos estudos sobre como a religião e a espiritualidade afetam a saúde física e mental da população em geral ou de grupos religiosos, existe muito pouco ou quase nada a respeito dessa relação entre os cientistas – aqui, os pesquisadores bebem muito do fenomenal trabalho de Elaine Ecklund, com quem Di Di já colaborou em vários estudos, e que vem mapeando as crenças e opiniões dos cientistas há muitos anos. O ambiente científico em geral tende a ser menos religioso, e em certas instâncias até hostil à religião (o que criaria um fator adicional de estresse para cientistas com alguma fé, que às vezes precisam “esconder” sua crença); aqui, a escolha dos países foi relevante, com EUA e Reino Unido sendo nações onde a percepção de conflito é mais aberta, e Índia e Itália tendo uma abertura um pouco maior à conciliação. Por fim, a física e a biologia são campos onde há mais tensão entre teorias científicas e certas correntes religiosas – especialmente na biologia, graças à controvérsia entre criacionismo e evolução.
Os cientistas que participaram da pesquisa foram classificados por filiação religiosa, mas também pelo nível de importância que dão à religião e/ou espiritualidade em suas vidas, resultando em quatro grupos: os que são “religiosos e espirituais”, os “espirituais, mas não religiosos” (isso até o falecido orkut tinha; são os que não têm filiação religiosa, mas que buscam uma transcendência e adotam práticas como meditação), os “religiosos, mas não espirituais” (que, segundo o estudo, “mantêm a filiação religiosa como marcador social”, mas não cultivam a espiritualidade, beneficiando-se do aspecto social da religião), e os que não são uma coisa nem outra – este último grupo constituiu 55% dos entrevistados, porcentagem bem maior que a média da população. Foram usados métodos já consagrados para medir bem-estar e estresse/desconforto psicológico. Os pesquisadores explicam que, além da tensão ligada à pandemia em si (o questionário perguntou se os entrevistados já haviam sido infectados, ou se alguém próximo havia contraído Covid ou falecido por causa da doença), estudos anteriores já haviam identificado outros fatores de estresse em acadêmicos durante esse período: atrasos em publicações, insegurança profissional, possibilidade de perda de bolsas/financiamento, aumento das demandas domésticas e restrições institucionais.
Cientistas religiosos e que dão importância à espiritualidade registraram maiores índices de bem-estar em comparação com os demais, em estudo realizado durante a pandemia de Covid-19
Quatro hipóteses foram testadas: 1a. se a importância que alguém dá à religião é diretamente proporcional a seu bem-estar; 1b. se a importância que alguém dá à religião é inversamente proporcional ao estresse/desconforto psicológico; 2a. se as pessoas que são “religiosas e espirituais”, “espirituais, mas não religiosas” e “religiosas, mas não espirituais” têm índices de bem-estar maiores que pessoas não religiosas, nem espirituais; 2b. se as pessoas que são “religiosas e espirituais”, “espirituais, mas não religiosas” e “religiosas, mas não espirituais” têm índices de estresse/desconforto psicológico menores que pessoas não religiosas, nem espirituais.
Os resultados da sondagem validaram as hipóteses 1a, 2a e 2b, mas não a hipótese 1b. Ou seja, os pesquisadores encontraram uma relação entre religiosidade/espiritualidade e bem-estar – na escala que vai de 5 (bem-estar mínimo) a 70 (bem-estar máximo), os “não religiosos nem espirituais” marcaram 50 pontos; “espirituais, mas não religiosos”, 51 pontos; “religiosos, mas não espirituais” e “religiosos e espirituais”, 52 pontos. O grupo dos que consideraram a religião/espiritualidade moderadamente ou muito importante em suas vidas marcou 53 pontos. Já quanto ao estresse/desconforto psicológico, em uma escala que vai de zero (menos estresse) a 24 (estresse máximo), o grupo dos que consideram a religião ou espiritualidade moderadamente ou muito importante não se diferenciou da média. Mas o grupo dos “não religiosos nem espirituais” marcou 14 pontos, enquanto os outros três tiveram 13. Cientistas católicos e hindus se destacaram, registrando índices de bem-estar e estresse significativamente maiores e menores, respectivamente, em comparação com outros grupos. Os autores acreditam que isso possa estar ligado a uma atitude mais tranquila dessas duas religiões em relação à ciência.
Como sempre acontece em estudos desse caso, os próprios autores reconhecem algumas limitações e sugerem aprofundamentos, como o de tentar descobrir por que católicos e hindus tiveram um desempenho peculiar no estudo; pesquisar separadamente os efeitos da religião (no sentido de afiliação religiosa e benefícios sociais que ela traz) e da espiritualidade; ou investigar quais componentes específicos que foram o conceito de “bem-estar” (posição financeira, saúde física, saúde mental etc.) são mais afetados pela religiosidade ou espiritualidade. Os pesquisadores também não descartam a possibilidade de a pandemia ter levado as pessoas em geral – e os cientistas em particular – a buscar na religião ou na espiritualidade uma forma de lidar com toda a ansiedade decorrente da Covid-19, e que os resultados em um contexto pré- ou pós-pandemia podem ser um pouco diferentes. Mesmo assim, trata-se de um estudo bastante interessante e que dá muito o que pensar.
Zygon agora tem acesso aberto
A edição da Zygon em que este artigo foi publicado foi a última a cargo da Wiley. A partir de janeiro, a revista migrou para um modelo de diamond open acess, pela Open Library of Humanities. Ou seja, todo esse material de primeiríssima qualidade, incluindo todas as edições anteriores desde a criação da revista, em 1966, está disponível gratuitamente.
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