Cobrinha esperta

Eu realmente acho engraçado quando alguém vem desqualificar a Bíblia usando como exemplo o relato da tentação de Adão e Eva, acrescentando que “cobras não falam” e concluindo que, por causa disso, todo o resto é falso. Acho engraçado porque os ateus que fazem isso partem de uma interpretação 100% literal da Bíblia que, convenhamos, é adotada por uma minoria dos próprios cristãos. Mas, obviamente, como é muito mais fácil desqualificar o relato bíblico entendido todo de forma literal, é a versão preferida do ateísmo militante. Lembra a estratégia do espantalho.

No blog da Fundação Biologos, o escritor Pete Enns vem publicando uma série de ensaios sobre a interpretação dos primeiros capítulos do Gênesis, e um deles, especialmente interessante, é dedicado à questão da “cobra falante”. Ele mostra que mesmo os intérpretes antigos já demonstravam perplexidade com a ideia de uma serpente tão articulada a ponto de convencer os primeiros humanos a desobedecer as determinações divinas (ou seja, os ateus militantes que aceitam pacificamente o fato de que o autor sagrado estava realmente escrevendo sobre um réptil comum, mas falante, estão defasados até mesmo em relação aos primeiros cristãos).

Enfim, a “cobra falante”, levada ao pé da letra, não deixa de ser um outro elemento “anticientífico” do Gênesis, como tantas outras partes do início da Bíblia que, também interpretadas literalmente, contradizem nosso conhecimento científico. Mas, como podemos ver, a interpretação predominante passa longe do literalismo. Para alguém que tenha honestidade intelectual, personagens como a serpente não deveriam ser pretexto para desqualificar os relatos bíblicos. Na minha última passagem por São Paulo, achei uma versão em português do De Genesi ad litteram, de Santo Agostinho. Assim que tiver um tempo para ler com calma esse tratado, voltaremos ao tema com a avaliação do bispo de Hipona.

O Tubo de Ensaio é um dos três finalistas do prêmio Top Blog 2010 na categoria “blogs profissionais/religião”, tanto pelo voto popular quanto pelo júri acadêmico. Nas duas disputas, também são finalistas o Ancoradouro, de Fortaleza, e o blog da Ana Néri (que conheci pessoalmente quando estive no programa do professor Felipe Aquino). Queria agradecer a todos que votaram no Tubo, aos que fizeram campanha para convencer outros a votar, e aos comentaristas que tornam o blog melhor com seus insights e sugestões. Os vencedores serão anunciados em 18 de dezembro.

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