Santo Agostinho de Hipona foi um dos primeiros a defender interpretações não literais do relato da criação no Gênesis (Imagem: Reprodução)| Foto:

A pergunta é bem simples: se a teoria da evolução das espécies, proposta por Charles Darwin, chacoalhou radicalmente o modo como os cristãos leem os relatos bíblicos da criação, qual era a visão predominante antes de 1859? A fundação BioLogos fez um curto apanhado de fontes cristãs bem anteriores a Darwin e que já rejeitavam uma leitura 100% literal dos dois primeiros capítulos do Gênesis.

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O texto começa com o filósofo Orígenes, no século 3.º, que já contestava a ideia de que o relato da criação devesse ser lido de forma totalmente literal. Se não me engano, foi ele quem, em uma de suas obras, apontou para o fato de o dia e a noite serem criados antes do Sol e da Lua no primeiro capítulo do Gênesis (uma outra contradição, se pensarmos numa leitura 100% literal, é o fato de o homem e a mulher serem criados depois dos animais no capítulo 1, enquanto no relato do capítulo 2 o homem vem primeiro, depois vêm os animais e, por fim, a mulher; mas não sei se algum autor antigo ressaltou esse fato).

Pouco depois de Orígenes, Santo Agostinho também se dedicou extensivamente ao tema, afirmando que o estilo literário dos capítulos iniciais do Gênesis tinha o objetivo de comunicar uma mensagem central (Deus criou tudo o que há, o universo tem uma ordem, o homem foi criado para servir a Deus e cuidar do mundo etc.) em uma linguagem que o hebreu de milhares de anos atrás pudesse entender, o que seria reafirmado muitos séculos depois pelo reformador John Wesley. Agostinho também defende que Deus, ao criar o universo, lhe deu a capacidade de desenvolver a si mesmo. O texto da BioLogos não o menciona, mas também São Basílio, pouco antes de Agostinho, também tinha chegado a essa conclusão, como mostra este artigo do teólogo Howard van Till, que faz uma ressalva necessária: não devemos ver nenhum desses dois Padres da Igreja como “precursores da evolução”; seu pensamento, ainda que na direção correta, estava limitado pela compreensão do mundo em sua época (Agostinho, por exemplo, considerava que a criação toda tinha ocorrido em um único dia). A ideia de que Deus criou todas as coisas com potencial para se desenvolverem também está presente em Santo Tomás de Aquino, acrescenta o texto. Podemos concluir, então, que leituras totalmente literais do Gênesis, ainda que existissem, não eram as únicas nem, talvez, as mais influentes entre os cristãos. Na verdade, o furor literalista, como já tivemos a oportunidade de explicar, é um fenômeno até que recente, do início do século passado.

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E, já que estamos falando do Gênesis, recomendo também este texto da Gospel Coalition segundo o qual poucos textos bíblicos são tão “pró-ciência” quando o relato da criação. Dele se pode concluir que, tendo Deus criado o universo com uma ordem e criado o homem à Sua imagem e semelhança, a natureza é regida por leis que o ser humano tem a capacidade de compreender e investigar, como parte do mandato divino de submeter a terra. É preciso dar um desconto a certas generalizações do autor, como a que se refere à filosofia grega (afinal, houve um bom punhado de filósofos gregos que, sim, tentaram entender a natureza, não apenas os meandros da razão humana), mas mesmo assim há ponderações bem interessantes e que nos ajudam a lembrar que esse mindset judaico-cristão possibilitou a explosão da Revolução Científica a partir do século 16.

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