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Unesp elaborou questão ligando a teleologia como proposta por Aristóteles às teorias biológicas sobre as espécies animais. (Imagem: Reprodução)
Unesp elaborou questão ligando a teleologia como proposta por Aristóteles às teorias biológicas sobre as espécies animais. (Imagem: Reprodução)| Foto:

Motivado por um post do Francisco Razzo no Facebook, fui atrás da prova da Unesp, realizada no dia 15. Razzo, colunista da Gazeta, havia mencionado que Galileu tinha sido citado no exame, mas fui ver e achei até mais coisas interessantes.

As questões 12 a 17, por exemplo, se basearam em um texto de Marcelo Gleiser em seu livro A dança do universo, de 2006, sobre Nicolau Copérnico. Transcrevo aqui:

Algumas pessoas tornam-se heróis contra sua própria vontade. Mesmo que elas tenham ideias realmente (ou potencialmente) revolucionárias, muitas vezes não as reconhecem como tais, ou não acreditam no seu próprio potencial. Divididas entre enfrentar sua insegurança expondo suas ideias à opinião dos outros, ou manter-se na defensiva, elas preferem a segunda opção. O mundo está cheio de poemas e teorias escondidos no porão.

Copérnico é, talvez, o mais famoso desses relutantes heróis da história da ciência. Ele foi o homem que colocou o Sol de volta no centro do Universo, ao mesmo tempo fazendo de tudo para que suas ideias não fossem difundidas, possivelmente com medo de críticas ou perseguição religiosa. Foi quem colocou o Sol de volta no centro do Universo, motivado por razões erradas. Insatisfeito com a falha do modelo de Ptolomeu, que aplicava o dogma platônico do movimento circular uniforme aos corpos celestes, Copérnico propôs que o equante fosse abandonado e que o Sol passasse a ocupar o centro do cosmo. Ao tentar fazer com que o Universo se adaptasse às ideias platônicas, ele retornou aos pitagóricos, ressuscitando a doutrina do fogo central, que levou ao modelo heliocêntrico de Aristarco dezoito séculos antes.

Seu pensamento reflete o desejo de reformular as ideias cosmológicas de seu tempo apenas para voltar ainda mais no passado; Copérnico era, sem dúvida, um revolucionário conservador. Ele jamais poderia ter imaginado que, ao olhar para o passado, estaria criando uma nova visão cósmica, que abriria novas portas para o futuro. Tivesse vivido o suficiente para ver os frutos de suas ideias, Copérnico decerto teria odiado a revolução que involuntariamente causou.

Entre 1510 e 1514, compôs um pequeno trabalho resumindo suas ideias, intitulado Commentariolus (Pequeno comentário). Embora na época fosse relativamente fácil publicar um manuscrito, Copérnico decidiu não publicar seu texto, enviando apenas algumas cópias para uma audiência seleta. Ele acreditava piamente no ideal pitagórico de discrição; apenas aqueles que eram iniciados nas complicações da matemática aplicada à astronomia tinham permissão para compartilhar sua sabedoria. Certamente essa posição elitista era muito peculiar, vinda de alguém que fora educado durante anos dentro da tradição humanista italiana. Será que Copérnico estava tentando sentir o clima intelectual da época, para ter uma ideia do quão “perigosas” eram suas ideias? Será que ele  não acreditava muito nas suas próprias ideias e, portanto, queria evitar qualquer tipo de crítica? Ou será que ele estava tão imerso nos ideais pitagóricos que realmente não tinha o menor interesse em tornar populares suas ideias? As razões que possam justificar a atitude de Copérnico são, até hoje, um ponto de discussão entre os especialistas.

Nós já vimos esse tema: um Copérnico bastante receoso a respeito de suas ideias, com medo de uma possível perseguição religiosa, que divulgava suas ideias apenas em círculos restritos. E também vimos que a realidade não foi bem essa, pois o modelo copernicano era conhecido até mesmo no Vaticano. As questões da prova são de interpretação de texto, então nem dá para criticar a questão 14, ainda que o embasamento histórico esteja errado, pois o objetivo é ver se o vestibulando entendeu o texto.

Prova da Unesp ajudou a alimentar a lenda de um Copérnico relutante em publicar sua teoria heliocêntrica por medo de perseguição religiosa. (Imagem: Reprodução)

Galileu entra em cena na questão 56, que me parece já estar no conjunto das disciplinas de Filosofia ou Sociologia (a prova não deixa explícita a divisão entre as disciplinas). É um trecho de Galileu Galilei, de José Américo Motta Pessanha, publicado em 2000:

Galileu tornou-se o criador da física moderna quando anunciou as leis fundamentais do movimento. Formulando tais princípios, ele estruturou todo o conhecimento científico da natureza e abalou os alicerces que fundamentavam a concepção medieval do mundo. Destruiu a ideia de que o mundo possui uma estrutura finita, hierarquicamente ordenada e substituiu-a pela visão de um universo aberto, infinito. Pôs de lado o finalismo aristotélico e escolástico, segundo o qual tudo aquilo que ocorre na natureza ocorre para cumprir desígnios superiores; e mostrou que a natureza é fundamentalmente um conjunto de fenômenos mecânicos.

Olha, eu realmente fico em dúvida se Galileu negava o propósito na natureza da forma como está descrito no texto; coincidência ou não, a questão do propósito foi justamente o tema central da conferência da ABC2, e uma das grandes ideias defendidas durante o evento foi a de que o caráter previsível da natureza, que pode ser apreendido por seu estudo, não implica de forma alguma a negação da existência de uma finalidade (ou “desígnio”, para usar a expressão de Motta Pessanha). Além disso, a “concepção medieval” do mundo já era a de um universo ordenado, cujas leis podiam ser estudadas pelo homem: foi justamente sobre essa base que ocorreu o florescimento da ciência moderna.

E ainda temos a questão seguinte, que recupera uma reportagem da revista Superinteressante:

O zoólogo Richard Dawkins e o paleontólogo Simon Conway Morris têm muito em comum: lecionam nas mais prestigiadas universidades da Grã-Bretanha […] e compartilham opiniões e crenças científicas quando o tema é a origem da vida. Para ambos, a riqueza da biosfera na Terra é explicada mais do que satisfatoriamente pela teoria da seleção natural, de Charles Darwin. […] Num encontro realizado na Universidade de Cambridge, porém, eles protagonizaram um novo round de um debate que divide a humanidade desde que o mundo é mundo: Deus existe? Morris, cristão convicto, afirmou [em sua palestra] que a “misteriosa habilidade” da natureza para convergir em criaturas morais e adoráveis como os seres humanos é uma prova de que o processo evolutivo é obra de Deus. Já o agnóstico Dawkins disse que o poder criativo da evolução reforçou sua convicção de que vivemos num mundo puramente material.

De cara, estranhei Dawkins ser descrito como “agnóstico”, mas gostei de ver a prova buscar um exemplo de cientista que sabe conciliar sua fé com a adesão irrevogável à Teoria da Evolução. As divergências entre Dawkins e Conway Morris, como se pode ver, são de cunho filosófico/teológico/metafísico, mais uma vez entrando no tema da existência ou não de um propósito na natureza (neste caso, nos processos evolutivos). Espero que a moçada tenha marcado (d).

Richard Dawkins

Já era tempo de um vestibular mostrar que existem visões alternativas àquela de Richard Dawkins, para quem a Teoria da Evolução conduz ao ateísmo. (Foto: Andrew West/British Humanist Association)

Por fim, vem a questão 68, também sobre teleologia, quem diria! Ela usa como base um texto publicado em Argumentos – Revista de Filosofia:

Aristóteles procurou explicar os fenômenos naturais a partir de argumentos teleológicos. A palavra teleologia provém de dois termos gregos, telos (fim, meta, propósito) e logos (razão, explicação), ou seja, uma “razão de algo em função de seus fins” ou uma “explicação que se serve de propósitos ou de fins”. Na explicação teleológica, se algo existe e tem uma finalidade, é porque existe uma razão para essa finalidade. Neste sentido, uma explicação teleológica estará centralizada na finalidade de alguma coisa. Por exemplo, na explicação teleológica, nossos dedos são articulados para que possamos manipular objetos, ao contrário da explicação não teleológica, que afirma que manipulamos objetos porque nossos dedos são articulados.

Confesso que tenho minhas dúvidas quanto à resposta dada como correta. O enunciado pergunta: Considerando as características adaptativas dos organismos, a teleologia:, e o gabarito aponta para (c), contraria as fundamentações teóricas propostas pela Teoria Sintética da Evolução. A minha impressão é a de que uma visão teleológica pode ser perfeitamente aplicada a qualquer teoria sobre a evolução das espécies, seja a de Lamarck, seja a de Darwin, seja a Teoria Sintética da Evolução (que agrega às ideias de Darwin a contribuição da genética, explicando como as alterações que serão selecionadas pela natureza têm origem em mutações genéticas aleatórias), pois estamos tratando de coisas que não são interligadas. Uma coisa é como os processos evolutivos ocorrem, outra coisa é se existe algum propósito ou finalidade nisso tudo. São temas isolados, não interdependentes. Olhando dessa forma, nem mesmo a resposta (e) poderia ser correta, porque não é a teleologia que “sustenta” as teorias científicas; ela seria apenas uma chave de leitura possível para entender os processos evolutivos dentro de uma esfera mais ampla. Enfim, todas as combinações seriam possíveis, com visões teleológicas e não teleológicas (ou mesmo antiteleológicas) sendo aplicáveis a qualquer das teorias biológicas (lamarckismo, darwinismo, neodarwinismo); isso daria uma outra questão de análise combinatória para a prova de Matemática.

A esse respeito, fui consultar o Ignacio Silva, do Instituto de Filosofia da Universidade Austral, na Argentina. Ele me mandou duas citações a esse respeito. Começamos com Francisco Ayala, biólogo evolucionista e filósofo. Em 1970, ele escreveu que “as explicações teleológicas implicam que o resultado final é a razão que explica a existência do objeto ou do processo que serve ou que leva ao mesmo. Uma explicação teleológica das guelras do peixe implica que elas surgiram precisamente porque servem para a respiração. Se o raciocínio acima estiver correto, o uso de explicações teleológicas na biologia não é apenas aceitável, mas é, de fato, indispensável”. (“Teleological Explanations in Evolutionary Biology”, Philosophy of Science 37, p. 1-15). Os destaques são meus, e aqui Ayala vai até além do que eu havia imaginado. Essa citação está também em Darwin e Deus, livro de Alister McGrath (publicado no Brasil pela ABC2 e Ultimato) do qual vem o outro trecho: “Embora alguns tenham defendido que a rejeição de qualquer espécie de teleologia sera algo fundamental à síntese evolutiva, fica claro que essa afirmação não é confiável, baseando-se em preconceitos a respeito da conotação do termo ‘teleologia’ (…) As adaptações de organismos podem ser consideradas algo explicado teleologicamente, quando sua existência puder ser atribuída em termos de sua contribuição para a aptidão reprodutiva da população. Tais adaptações, como órgãos, mecanismos homeostáticos ou padrões de comportamento, tiveram impacto benéfico na sobrevivência ou nas capacidades reprodutivas dos organismos, que podem ser consideradas como o ‘objetivo’ fenomenológico para o qual elas se voltam” (p. 195-196). Enfim, a única possibilidade que consigo imaginar é a de o examinador ter tido a intenção de contrapor o caráter totalmente aleatório das mutações genéticas ao conceito de propósito ou finalidade que a teleologia sugere, mas podemos ver que a coisa toda é bem mais complicada que isso.

De qualquer maneira, essas discussões sobre teleologia, a noção de evolução como algo surgido da criatividade divina, Galileu e Copérnico deixam a prova da Unesp anos-luz à frente do exame mais comentado dos últimos dias, aquele que confunde o pensamento de Santo Tomás de Aquino com Santo Anselmo, fora as outras coisas das quais nem vale a pena falar…

Pequeno merchan

Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.

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