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O impacto da epidemia global de coronavírus chegou à religião. Grandes eventos religiosos e peregrinações estão cancelados, e o governo italiano adotou uma medida extrema e que, pelo menos a meu ver, é uma interferência sem precedentes na liberdade religiosa: proibiu a celebração de missas públicas para evitar a aglomeração de pessoas. Como a Conferência Episcopal Italiana simplesmente se curvou, só me resta esperar que os padres continuem celebrando privadamente.
(Para vocês verem como são as coisas: enquanto na Itália as missas são suspensas, na Polônia a estratégia dos bispos para evitar aglomerações é mandar os padres celebrarem mais missas, para dispersar os fiéis...)
No Brasil, onde os casos ainda são poucos, as medidas são bem menos drásticas. Quando há algum comunicado emitido por bispos ou dioceses católicas, por exemplo, eles tratam de coibir gestos prosaicos, como dar as mãos durante o Pai Nosso (o que já não deveria ser feito de qualquer modo) e evitar o contato no abraço da paz, que em muitos lugares já foi movido para o fim da missa. Mas, como em todo surto de gripes e doenças assemelhadas, seja por genuína preocupação com a saúde da população, seja por uma aversão a qualquer coisa que lembre o catolicismo mais tradicional, seja por uma mistura das duas coisas, sobrou para a comunhão na boca. A maioria das dioceses está recomendando que se priorize a distribuição da hóstia na mão dos fiéis; outras estão obrigando que se faça isso.
Recomendar e incentivar a comunhão na mão é uma coisa; proibir a comunhão na boca é outra, pois nesse tema nem mesmo a autoridade que cada bispo tem dentro de sua diocese pode se sobrepor às determinações de Roma. A norma da Igreja Católica diz que é o fiel quem escolhe como recebe a comunhão, não é o padre (ou o bispo) que decide como ela será distribuída. Em 2009, durante uma epidemia de gripe H1N1, um fiel britânico consultou o Vaticano sobre a possibilidade de se proibir a comunhão na boca, e a resposta foi que nem mesmo neste caso se deve cassar o direito dos fiéis de decidir como eles querem comungar. Suponho que, se repetissem a pergunta agora, o cardeal Robert Sarah responderia a mesma coisa. Mas nosso negócio aqui não é Direito Canônico, e sim como a ciência pode embasar as decisões de autoridades religiosas. Por isso, destaco o que fez a Arquidiocese de Portland, nos Estados Unidos: o departamento litúrgico consultou dois médicos, um deles imunologista, e ouviu deles que, tomados os devidos cuidados, tanto faz a comunhão na mão ou na boca. Na verdade, a julgar pelo texto, a comunhão na boca poderia ser até mesmo menos perigosa. Como assim?
Ninguém quer correr riscos desnecessários, mas surpreende que algumas decisões acabem sendo tomadas mais por achismo e senso comum, sem consultar quem mais entende do assunto
O infectologista Francisco Eduardo Cardoso Alves é médico assistente do Instituto de Infectologia Emilio Ribas (SES/SP), em São Paulo, e explica que “ao entregar a comunhão na boca, o padre vai estar exposto ao risco de ser contaminado pelo fiel que está efetivamente infectado pelo vírus. Mas, ao entregar a hóstia na mão, ele vai estar exposto ao risco de ser contaminado tanto por aquele fiel que está efetivamente infectado quanto por aquele que ainda não está infectado, mas já está com o vírus na mão, pois ficou pegando em tudo quanto é lugar por aí”. Em outras palavras: a pessoa foi à missa, colocou a mão sabe Deus onde ou no quê (se foi de ônibus, então...), encostou no banco da igreja, pode ter cumprimentado gente, pegou o dinheiro da oferta, e, na hora da comunhão, vai encostar essa mão nas mãos do padre ao receber a hóstia e, pior ainda, vai levar essa mão à boca para comungar – se o sujeito for piedoso o suficiente, ainda vai dar aquela lambidinha na palma da mão para garantir que nenhuma partícula da Eucaristia tenha ficado lá. Não é à toa que o comunicado da Arquidiocese de Portland diz que “as mãos estão mais expostas aos germes”.
O que fazer, então? Claro, há vários cuidados que podem ser tomados; o fiel pode higienizar as mãos com álcool gel antes de entrar na fila da comunhão, mas é impossível garantir que todos façam isso. “As igrejas poderiam colocar uma pequena pia com sabão líquido para os fiéis lavarem as mãos antes de se dirigirem ao padre na hora da comunhão, orientando-os a manter as mãos longe do corpo até receber a hóstia para não encostarem na roupa ou em outras coisas. O padre entregaria a hóstia na mão de cada um, e nesse caso poderíamos ter um diferencial em relação a entregar na boca”, explica Alves.
E quanto ao padre ou ministro extraordinário, que precauções tomar? Alves sugere lavar as mãos antes do primeiro fiel, e entre cada um deles. “Pode-se deixar um assistente ao lado com papel descartável pra agilizar a limpeza e água corrente, uma pia mesmo, ao lado. Dá pra fazer isso com baixo custo”, diz o infectologista. Essa medida, no entanto, teria de ser realizada de forma que não se perdesse nem mesmo a mínima partícula das hóstias distribuídas, pois a doutrina católica afirma que Cristo está presente até mesmo no fragmento mais minúsculo, que não pode ser simplesmente jogado fora.
Uma solução está nas orientações de dom Fernando Rifan, da Administração Apostólica São João Maria Vianney, cujos padres celebram apenas o rito tridentino, em que não existe comunhão na mão. Em comunicado datado de 3 de março, o bispo faz uma série de conselhos, e destaco o último deles: “Um acólito ou coroinha deve portar, ao lado do ministro que dá a comunhão, um recipiente com álcool em gel, para o ministro limpar os dedos, caso toque na boca ou língua de algum fiel, antes de dar a comunhão ao próximo comungante. Depois, esse recipiente deverá ser purificado e o álcool remanescente lançado na piscina da sacristia”. Alves, no entanto, alerta que a contaminação não requer o toque da mão do padre nos lábios ou língua do fiel: “A transmissão por gotícula não exige contato direto”.
Além disso, nos lugares onde há as duas formas de distribuir a hóstia e persistir certa desconfiança em relação à comunhão na boca, há outras providências que podem ser tomadas, como destinar uma única fila para quem quiser comungar assim, ou pedir que essas pessoas fiquem para o fim da fila, sendo as últimas a receber a hóstia.
Ninguém quer correr riscos desnecessários, é claro, mas surpreende que algumas decisões acabem sendo tomadas mais por achismo e senso comum, sem consultar quem mais entende do assunto. Quanto à epidemia, que sigamos o bom e velho conselho de agir como se tudo dependesse de nós (médicos e cientistas, dando duro para cuidar dos doentes, achar curas e vacinas; e todos nós, tomando as precauções básicas) e rezar como se tudo dependesse de Deus.