Em julho de 2005, o cardeal-arcebispo de Viena, Christoph Schönborn, publicou no New York Times um artigo que deu muito o que falar, chamado “Finding design in nature”. Dias depois, o próprio NYT repercutiu o texto com vários cientistas e religiosos, apesar de algumas escorregadas. O próprio título da reportagem, “Leading cardinal redefines Church’s view on evolution”, é enganoso, pois, apesar de ter sido o editor-chefe do Catecismo da Igreja Católica e ser próximo do então recém-eleito Bento XVI, de quem fora aluno, Schönborn não era exatamente um leading cardinal, mas um arcebispo metropolitano, sem cargo proeminente na Cúria Romana. Enfim, não era como se o artigo viesse, sei lá, do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Além disso, o artigo tinha a opinião do cardeal; ele não falava em nome da Igreja e, assim, não estava “redefinindo” coisa alguma.
O artigo propriamente dito não é assim um primor. O cardeal acerta quando diferencia a Teoria da Evolução (a explicação científica para a variedade de vida na Terra) de seus sequestros ideológicos, como o uso da evolução para defender o materialismo ou mesmo o ateísmo, com direito a afirmações de cunho metafísico que negam qualquer propósito ou desígnio (atenção, voltaremos a isso) nos processos evolutivos. A Igreja Católica sempre se opôs a esse uso ideológico da evolução, mas também deixou clara em mais de uma oportunidade a compatibilidade da doutrina católica com a teoria de Darwin. Mas Schönborn pisa incrivelmente na bola quando diminui a relevância da mensagem de João Paulo II à Pontifícia Academia de Ciências em 1996 (descrita como “vaga e nada importante”), tentando contrastá-la com o texto de uma audiência de 1985 quando, na verdade, não há contradição nenhuma entre ambas.
O artigo de Schönborn acabou entrando para a história como uma defesa do Design Inteligente. Olhando o texto propriamente dito, isso não fica explícito. Uma coisa é dizer que há um desígnio na natureza (e o cardeal realmente usa muito a palavra design em seu artigo), outra é defender as intervenções pontuais e específicas de um designer como fazem os proponentes do DI, e isso o artigo não faz. Mas a reportagem do NYT mostra que houve, sim, um dedinho do Discovery Institute, o principal promotor do DI, na história, ainda que não na elaboração do artigo. Obviamente, os defensores do Design Inteligente capitalizaram em cima do texto, como se vê na própria reportagem. Também, pudera: o próprio Schönborn piorou as coisas quando disse ao NYT que sua intenção era “corrigir a ideia ‘frequentemente invocada’ de que a Igreja aceita ou pelo menos condescende com a teoria da evolução”. Mas essa noção é correta: a Igreja realmente aceita a teoria da evolução como compatível com seu ensinamento; o que ela não aceita são derivações ideológicas materialistas feitas por quem quer ir além do que Darwin propôs. Não havia nada o que corrigir ali.
A controvérsia não acabou ali, e por isso o cardeal passou um ano, entre 2005 e 2006, dedicando suas catequeses mensais na catedral de Santo Estêvão, em Viena, a esse tema. Essas pregações deram origem ao livro Chance or Purpose? Creation, evolution and a rational faith. Mas quem ler o livro esperando que Schönborn esclareça “de que lado está” vai se decepcionar. O cardeal austríaco descarta totalmente o criacionismo de Terra jovem, isso sim: chama essa teoria de “nonsense” e vai além, dizendo que defendê-la é expor a fé à zombaria, ao que Santo Tomás de Aquino chama de irrisio infidelium. De resto, não há nenhuma adesão enfática seja da evolução, seja do Design Inteligente. O máximo que o autor faz é defender o debate sobre o tema; lá e cá existem alguns acenos à Teoria da Evolução, como na referência feita no fim do livro à “escada de Darwin”, representando o movimento ascendente da evolução, em paralelo com a “escada de Jacó” da narrativa bíblica. E ao mesmo tempo há umas cutucadas no DI, como quando o cardeal questiona que raio de design inteligente é esse que dá origem a um louva-a-deus canibal, ou quando diz que “Deus não é um construtor de máquinas, mas um criador de naturezas”.
O que Schönborn deixa claro é sua crítica ao que chama no livro de “darwinismo”: não a Teoria da Evolução em si, mas seu uso ideológico, como a adoção da tese da “sobrevivência do mais apto” na economia ou na bioética, ou conclusões filosófico-metafísicas, como a de que a evolução mostra que não existe propósito algum na natureza, ou que Deus não existe ou não é necessário. Aí não estamos mais fazendo ciência, diz o cardeal, e sim usando-a para justificar as próprias convicções.
Chance or purpose? não é um livro sobre evolução ou Design Inteligente, como dissemos; é um guia pela concepção católica do que significa o processo criador de Deus, que pode perfeitamente se servir de leis naturais como as que regem a evolução e do acaso que permite as mutações essenciais a esse processo. Primeiramente, Schönborn vai explicar que não faz sentido acreditar em Deus se não for um Deus criador, que tirou o universo a partir do nada, um conceito que, defende o cardeal, nunca foi empecilho ou limitador para a ciência. Mas isso não basta. Quando dizemos que Deus é a “causa primeira” de tudo o que há, não estamos comparando-o ao taco de bilhar que coloca as bolas em movimento. Deus não é o “relojeiro” deísta; Ele é a “causa primeira” porque está continuamente sustentando a criação com Sua vontade. Tudo o que existe é contingente; depende de Deus, o único que é necessário. Deus é Deus, criatura é criatura; não se pode confundir as coisas.
Mas não é apenas isso: a criação é contínua, e não um ato isolado no início dos tempos. Crer em Deus é crer que Ele segue agindo no mundo, como aliás o próprio Cristo afirmou. Criação contínua, diz Schönborn, não é fazer ajustes ou reparos no que deu errado (eis outra leve alfinetada no DI), mas mantê-la na existência e cuidar dela pela ação da Sua Providência, o que não exclui saltos como os da matéria inorgânica para a orgânica, ou dos animais para o homem: a natureza oferece as pré-condições (os elementos químicos no ambiente certo, ou as estruturas biológicas do Homo sapiens), mas Deus ainda é a causa. Isso é parte do plano de Deus para a criação, não uma ação do tipo Deus ex machina, argumenta o cardeal.
Mas, ao lado dessas considerações mais “teóricas”, Schönborn também trata desta criação, ou seja, do mundo que está aí, com essas espécies e essas características. E o ponto de partida não podia ser outro a não ser o relato do Gênesis, que o cardeal diz ser não um relato científico, mas uma história com sete grandes mensagens: 1. Tudo foi criado; 2. Deus quis a variedade da vida na Terra (negando tanto os defensores do acaso completo quanto gnósticos e neoplatônicos para quem a variedade é sinônimo de decadência ou corrupção); 3. A variedade não apenas é desejada por Deus, mas é também ordenada, e 4. esta ordem é ascendente; 5. Deus usa a própria Terra para criar (no Gênesis, Ele diz “Que a terra produza…”); 6. Estamos todos conectados (em outras palavras, Descartes separou, mas Darwin reuniu, apesar de nesse esforço de reunião ele tenha jogado fora o que torna o homem único); e 7. A criação existe para a glória de Deus.
O ser humano, claro, tem um papel especial neste processo. Schönborn se pergunta por que as pessoas “se ofendem” com Copérnico (“nosso planeta não é o centro do universo”) ou Darwin (“o homem é um animal como os outros”), e rejeita as dicotomias. O homem é parte do reino animal ou uma criação única de Deus? É um ser entre tantos da natureza, ou é a “coroa da criação”? Ora, o homem é tudo isso, diz o cardeal. Ele é parte do todo, do fluxo da natureza, está sujeito a suas leis. Mas olha além de si mesmo e de seus interesses vitais, é capaz de mudar, usa a mente, a razão e a vontade. Só as pessoas, e não os genes, são responsabilizadas e responsabilizáveis. A resposta completa sobre o homem só virá se ciência e fé trabalharem juntas, e a verdade é que jamais fomos destronados. O mundo foi criado em função do ser humano, para que ele o submeta – e Schönborn vai usar um capítulo inteiro para explicar o que significa esse mandato divino: o domínio como usufruto e cuidado, e não de forma utilitarista para conquistar poder e conhecimento (que é a visão cartesiana e marxista da relação entre o homem e o resto da criação).
E, se o homem é o ponto culminante da criação, Cristo é o ponto culminante do ser humano. Schönborn toma emprestado o pensamento de Teilhard de Chardin, para quem Cristo é o motor, o ápice da evolução. Não porque seja criatura, pois é Deus, mas porque o Logos encarnado é o cumprimento pleno do plano divino.
E, já que falamos em plano divino, Schönborn arremata o livro reforçando uma ideia que permeia toda a obra: a criação tem, sim, um propósito. O cardeal cita o falecido padre Stanley Jaki, que gostava de ressaltar a ironia de um processo sem propósito ter dado origem a um ser que faz tudo com propósito (e até quem nega haver propósito o faz com um propósito, o de promover o materialismo, que não é ciência, mas uma “contrametafísica”). Para explicar as origens, existem a narrativa bíblica e a narrativa da ciência, da evolução. À pergunta “qual delas é a verdadeira”, a melhor resposta é “ambas!” É justamente a existência de um propósito na criação e na natureza que permite costurar as duas narrativas. “No início era o Verbo, não o acaso aleatório”, diz Schönborn. Afirmar a existência desse propósito não é uma afirmação científica, que fique claro, e sim uma afirmação filosófica. Mas é para isso que Deus nos deu a razão.
Pequeno merchan
Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.