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Tubo de Ensaio

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Criacionismo nas escolas estaduais: uma ideia no mínimo mal explicada

O deputado Artagão Júnior explicou que caberá à Secretaria de Estado da Educação definir em que disciplina será ensinado o criacionismo, caso seu projeto de lei seja aprovado. (Foto: Albari Rosa) (Foto: )

A essa altura, os leitores da Gazeta do Povo já estão por dentro do projeto do deputado Artagão Júnior que pede o ensino do criacionismo nas escolas da rede estadual paranaense. Demos reportagem, assinada pelo Paulo Galvez, e o Rogerio Galindo também fez seu comentário no blog Caixa Zero.

Fui atrás do texto. A íntegra do projeto de lei e da justificativa é muito vaga, com uma série de lacunas. Para começar, nem o texto legal, nem sua justificativa informam se o criacionismo seria ensinado nas aulas de Ciências ou nas de Ensino Religioso (que, como podemos ver, tem até um site específico dentro do portal da Secretaria de Estado da Educação). O projeto também não diz exatamente que tipo de criacionismo será ensinado, se aquele de Terra jovem, segundo o qual o universo tem pouco mais de 6 mil anos (a corrente defendida por grupos como o Answers in Genesis), ou se o criacionismo de Terra antiga, que aceita o consenso científico sobre a idade do universo e do planeta, mas contesta a teoria da evolução como explicação para a variedade da vida na terra (um exemplo desse pensamento é o do grupo Reasons to Believe).

Isso faz diferença? Certamente. Criacionismo, e me desculpem os leitores criacionistas, não é ciência (e não coloco nenhum demérito nisso, pois não sou cientificista); é uma explicação de cunho religioso/metafísico para a origem do universo, da vida, do ser humano etc. Jamais deveria ser ensinado em aulas de Ciências. E nas aulas de Ensino Religioso, pode? Aí eu já acho tolerável. Mas, como estamos falando da rede pública, acho que numa situação dessas seria preciso também abrir espaço para as cosmogonias de outras religiões, ainda que minoritárias em nosso país.

Para tirar as dúvidas, conversei com o deputado autor do projeto. Ele me explicou que deixou em aberto a disciplina em que o criacionismo seria inserido para que a decisão fosse da Secretaria de Estado da Educação, em regulamentação posterior, até porque nem todas as escolas da rede estadual têm aulas de Ensino Religioso. Artagão Júnior também não mostrou preferência por ensinar o criacionismo nesta ou naquela disciplina, mas gostaria que ele fosse explicado aos alunos na mesma época em que as aulas de Ciências tratassem da teoria da evolução, para que os dois conceitos chegassem aos estudantes de forma simultânea.

Quanto à vertente do criacionismo, se de Terra jovem ou de Terra antiga, o deputado também não defendeu nenhuma corrente específica. “As definições podem ser ajustadas, inclusive para contemplar as interpretações que forem mais populares”, afirmou. Perguntei a ele qual era sua convicção pessoal sobre a idade do universo, e Artagão Júnior disse não ter os elementos para dizer com toda a certeza se o universo tem 6 mil anos, 14 bilhões de anos ou outra idade qualquer. “Sei que há interpretações variadas para os trechos da Bíblia. Minha convicção pessoal é a de que houve uma intervenção divina na criação do universo, e meu objetivo com o projeto é inserir esses conteúdos para promover o debate a respeito do tema”, concluiu.

Dito isso, vamos destrinchar o texto. A definição de criacionismo que está no projeto de lei, para começar, é bem vaga: “noções de que a vida tem sua origem em Deus, como criador supremo de todo o universo e de todas as coisas que o compõe” (sic). Mas reconhecer Deus como criador do universo e de tudo o que nele há não necessariamente é ser criacionista. Um evolucionista cristão, por exemplo, certamente entende que Deus criou o universo e é a causa primeira de tudo o que existe, ainda que não tenha diretamente feito, por atos criadores específicos, todas as coisas. O que caracteriza o criacionismo é a interpretação literal dos relatos da criação contidos no Gênesis, com a consequente negação da teoria da evolução como explicação para a variedade da vida na Terra.

O artigo 2º e a justificativa do projeto deixam mais claro o caráter do criacionismo como explicação alternativa à evolução, mas ainda assim há barbeiragens. A justificativa começa falando do cientificismo, “que muito nos ajuda”, embora eu tenha a impressão de que o deputado quis dizer que é a ciência, e não o cientificismo, que muito nos ajuda, porque logo a seguir ele vai fazer uma crítica ao cientificismo por rejeitar qualquer conhecimento não comprovável em laboratório. A meu ver, essa crítica é o único trecho feliz da justificativa.

Dali em diante, é uma confusão atrás da outra. O evolucionismo é definido como a afirmação de que “a vida originou-se de uma ‘célula primitiva’ que se pôs em movimento pelo ‘Big Ban'” (sic, de novo). Como o Big Bang entrou na dança é um mistério para mim. Aliás, é preciso ressaltar que nem o Big Bang, nem a evolução, trazem a resposta para o surgimento da vida na Terra a partir da matéria inorgânica. O Big Bang é uma explicação de como surgiu o universo; a evolução é uma explicação de como, a partir da forma primordial de vida orgânica, se desenvolveu a variedade que observamos hoje. Mas Darwin nunca entrou no mérito de como houve a passagem da matéria inorgânica para a orgânica.

O projeto, a seguir, diz que a maioria da população brasileira é criacionista. Bom, o que eu achei a respeito foi uma pesquisa Datafolha de 2010 que colocava o apoio ao criacionismo em apenas 25%. Quase 60% defendiam a evolução, mas considerando que Deus guia os processos evolutivos. Aí é que está. Se o deputado quis dizer que a maioria simplesmente acredita em um Deus criador, ele está certo; mas, como já vimos, isso não basta para caracterizar o criacionismo.

Artagão Júnior ainda incluiu a Igreja Católica no rolo, como defensora do criacionismo. Isso está simplesmente errado. A Igreja Católica, obviamente, afirma a existência de um Deus criador. Mas ela não defende que o mundo foi criado há 6 mil anos e cada animal foi diretamente criado por Deus, ou que as espécies evoluíram como proposto por Darwin. A Igreja se limita a afirmar se essa ou aquela teoria científica é compatível com a fé católica. E o papa Francisco acabou de reafirmar (pois outros antes dele já disseram a mesma coisa) que a evolução é plenamente compatível com o Catolicismo. Isso, é claro, não significa um endosso oficial a essa ou aquela teoria. Um católico pode defender o evolucionismo, o criacionismo ou o Design Inteligente sem estar caindo em heresia ou cometendo pecado nenhum. Cabe à ciência, e não à Igreja, definir qual das explicações é a verdadeira.

E o deputado infelizmente ainda se deixou levar pela lorota que associa evolução e ateísmo, mentira propagada tanto por ateus militantes quanto por fundamentalistas religiosos e na qual muita gente de boa vontade acaba acreditando. O próprio exemplo de pessoas de fé que são grandes defensoras da evolução desmente o argumento de Artagão Júnior. Aqui mesmo no blog vivemos falando dessas pessoas.

Por fim, a justificativa traz um enorme non sequitur (tipo de falácia em que a conclusão não deriva das premissas) ao associar o ensino do criacionismo às liberdades fundamentais garantidas pela Constituição. Desde quando “ensinar apenas o evolucionismo nas escolas é ir contra a liberdade de crença de nosso povo”? Alguém por acaso está sendo impedido de acreditar no criacionismo? Desde quando alguém está sendo privado de algum direito por causa de convicção filosófica ou política? Até onde eu sei, no Brasil não é proibido falar de criacionismo ou defendê-lo. O argumento da liberdade de culto não tem nenhuma relação com o ensino de uma doutrina não científica em uma sala de aula.

Por enquanto é isso. No próximo post teremos a opinião de alguns criacionistas sobre o projeto.

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