O Sudário de Turim é a relíquia mais famosa da cristandade, e também a mais controversa. Como todos os registros históricos a seu respeito se iniciam apenas lá pelo século 14, muitos céticos já decretaram que o Sudário, que muitos creem ter sido o pano que envolveu o corpo de Cristo depois da crucifixão, é uma produção medieval, e o que não falta por aí é gente fazendo réplicas do Sudário para mostrar que um farsante poderia ter produzido a imagem. Pois essa turma acaba de ganhar um incentivo daqueles: um prêmio de US$ 1 milhão.
O documentarista britânico David Rolfe anunciou, em 8 de fevereiro, que um financiador dará o dinheiro a quem conseguir produzir uma réplica exata do Sudário usando apenas instrumentos e técnicas que estavam disponíveis no fim da Idade Média. De acordo com o National Shroud of Turin Exhibit, uma organização que pretende criar um museu sobre o Sudário em Washington, serão selecionados três candidatos entre os que disserem ser possível criar a cópia, e cada um receberá não um, mas três pedaços de linho com o tamanho exato do Sudário – a receita poderá desandar até duas vezes, mas depois será como no beisebol, three strikes and you’re out.
Não basta fazer uma réplica qualquer do Sudário, uma que engane o olho nu. Para levar o milhão, será preciso copiar todas as características do objeto real
Antes de levar seu desafio para os Estados Unidos, Rolfe provocou o Museu Britânico, que supervisionou o famoso teste de carbono-14 feito em 1988 e segundo o qual o Sudário seria um produto medieval – o teste hoje está amplamente desacreditado, e a hipótese mais provável para o resultado é a contaminação do material. Aparentemente o museu não respondeu, e eu particularmente achei a escolha estranha. Primeiro, porque o Museu Britânico não precisaria desse empenho todo, pois consegue levantar US$ 1 milhão com o pé nas costas – sua receita no ano fiscal encerrado em março de 2023 foi de 134,8 milhões de libras (US$ 170,3 milhões em valores de hoje). Segundo, porque até onde eu sei nunca foi intenção do Museu Britânico fazer cópias do Sudário, apenas supervisionar o teste de 1988.
De qualquer maneira, onde a porca torce o rabo é que não basta fazer uma réplica qualquer do Sudário, uma que engane o olho nu. Para levar o milhão, será preciso copiar todas as características do objeto real: imagem tridimensional, superficial, muito mais nítida no negativo que no positivo, com todas as manchas de sangue, etc. etc. etc. e muitos etc – são sete critérios que o pano produzido agora terá de cumprir para fazer jus ao prêmio. E todas as tentativas feitas até hoje de replicar o Sudário falham em ao menos um dos quesitos; lamento muito nunca mais ter conseguido encontrar uma tabela que vi na internet anos atrás, que mostrava quais características do Sudário estavam presentes ou ausentes em cada tentativa de recriá-lo. É por isso que Rolfe e seu financiador confiam plenamente que o Pix não precisará ser feito.
Todo o insucesso passado, presente e talvez futuro em fazer uma cópia perfeita do Sudário não seria uma evidência, cientificamente falando, de que ele é autêntico. No máximo, seria um atestado da nossa incapacidade atual
O desafio, afinal, não é como um outro que noticiei anos atrás, em que o seu proponente queria uma explicação para o surgimento da vida que tirasse Deus do caminho – o que ele não conseguiria de qualquer forma, pois o Deus que ele queria colocar de lado era o velho “Deus das lacunas”. Rolfe e seu financiador acreditam que o Sudário é autêntico, no sentido de ser a mortalha descrita nos Evangelhos e que envolveu o corpo de Cristo entre a descida da cruz e a ressurreição, e que por isso é impossível de replicar. Enrico Simonato, do Centro Internacional de Estudos do Sudário, em Turim, também não acredita que alguém vença o desafio. “Independentemente de posições ideológicas [sobre a veracidade do Sudário], não acontecerá nada porque ainda hoje ninguém sabe como fazer uma oxidação de celulose de apenas 5 mícrons em 4,5 metros de pano”, afirmou ao colunista.
Eu sei – e acho que os autores do desafio também sabem – que todo o insucesso passado, presente e talvez futuro em fazer uma cópia perfeita do Sudário não seria uma evidência, cientificamente falando, de que ele é autêntico. No máximo, seria um atestado da nossa incapacidade atual, em vez da evidência irrefutável de que há algo sobrenatural ou miraculoso na origem do Sudário. Também eu considero que o Sudário de Turim é the real deal, embora minha fé não dependa disso, como a de ninguém deveria depender. Mesmo assim, é um desafio interessante. Só acho uma pena que nesta “segunda fase” apenas pessoas ou instituições nos Estados Unidos possam se inscrever. Rolfe e o doador deveriam abrir de uma vez as inscrições para gente de todo o mundo. Aí eu poderia dizer “Garlaschelli, vai que é sua!”
Conversa sobre o Sudário está em livro de entrevistas
Enrico Simonato, mencionado logo acima, veio a Curitiba em 2017 e, na ocasião, deu uma entrevista ao Tubo de Ensaio, falando do Sudário de Turim. Esta e outras entrevistas estão em A razão diante do enigma da existência, que reúne parte do trabalho feito em 15 anos de blog e coluna. O livro está temporariamente indisponível na Amazon e na Bookando, mas isso deve ser resolvido em breve.
Inscrições para o Conupes seguem abertas; vamos nos encontrar em Juiz de Fora!
O 5.º Congresso Internacional de Saúde e Espiritualidade (Conupes) ainda está com inscrições abertas, e ocorre de 11 a 13 de abril em Juiz de Fora (MG). Apesar do nome, ele não é só para profissionais da área da saúde, mas para qualquer um que se interesse pela relação entre saúde e espiritualidade; além disso, desde o ano passado a programação foi ampliada para incluir conteúdos das ciências humanas – o que, aliás, foi muito bem recebido pelos médicos participantes, que disseram ter tido ali a chance de ouvir e aprender coisas que não lhes dizem na faculdade de Medicina... Eu também estarei lá para falar um pouco da minha experiência de 15 anos escrevendo sobre ciência e fé, e para fazermos um minilançamento de A razão diante do enigma da existência.
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