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Direto de Cambridge: dia 2
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Como eu esperava, o segundo dia do curso aqui no Faraday Institute for Science and Religion foi bem mais denso que ontem. Voaram perguntas e dúvidas por todo lado. Mas, no meio da tarde, pudemos dar uma relaxada, como vocês verão depois.

Reprodução
A vida e a fé de James Clerk Maxwell foram o tema da primeira palestra do dia.

No entanto, o dia, que teve como tema Física e Fé, começou light. Ian Hutchinson, do MIT, que tinha falado ontem sobre o cientificismo, falou da vida de James Clerk Maxwell, um dos pioneiros do eletromagnetismo, e que estudou aqui, em Cambridge. Desde os dias de universitário, ele já demonstrava uma fé cristã profunda, que foi reforçada em sua atuação como professor e pesquisador; Maxwell via a ciência como parte do plano divino para a sua salvação, e diz que a elegância do universo aponta para um criador. Hutchinson ressaltou, no entanto, que Maxwell não precisava de provas científicas da veracidade do Cristianismo, e se preocupava com o uso de descobertas científicas para justificar convicções cristãs.

A palestra seguinte foi a mais densa do dia (e do curso, até agora). Tim O’Connor, da Universidade de Indiana (EUA), filósofo, falou sobre a questão do ajuste fino no universo e em suas implicações. Começou atacando o Deus das lacunas e defendendo a noção de santo Tomás de Aquino, para quem Deus é a causa primeira e Sua atuação deve ser encontrada nos “limites” da ciência, e não nos buracos. Depois de mostrar uma série de fatores (como a gravidade, a massa do neutrino e a força do Big Bang) que, se alterados em proporções minimamente mínimas (desculpem a redundância, mas de fato são variações do tipo 1 em 10 elevado a 60), teriam inviabilizado o próprio universo. Mesmo astrônomos não religiosos, como Fred Hoyle, reconheciam que o universo tem coincidências demais para ser só coincidência mesmo. Leonard Susskind chama esse ajuste fino de “o elefante na sala” dos físicos. O’Connor diz que, diante disso, não basta pensar “puxa, é mesmo!”; é preciso descobrir o que isso significa.

Para o filósofo, o ajuste fino aponta para um designer (e fez um exercício de Lógica para demonstrar, mas temo que tenha sido algo um pouco acima do meu entendimento), mas não é prova definitiva de coisa alguma. A seguir, ele elencou algumas objeções e os seus sed contra. Alguns céticos argumentam que, se não é necessária explicação para qualquer universo em que a vida fosse inviável, por que os universos “ajustados” precisariam? O’Connor responde que não se trata apenas de probabilidade, mas do resultado: se o seu adversário no pôquer conseguisse uma sequência de royal flushes, você não acharia suspeito demais e buscaria uma explicação, apesar de a chance de um royal flush ser a mesma de qualquer outra combinação de cinco cartas? Outros dizem que a evolução já oferece explicação suficiente, ao que O’Connor responde que não estamos falando de como a vida surgiu, e sim de por que o universo é estruturado de uma forma que permite o surgimento da vida. Pela terceira objeção, nem deveríamos estar surpresos por ter um universo favorável à vida, porque, se fosse diferente, nem estaríamos aqui para fazer esse tipo de observação. O filósofo aponta que não é preciso haver vida inteligente para que o universo é “ajustado”; basta que ele simplesmente seja “ajustado”.

Na continuação, O’Connor falou das hipóteses de multiverso. Ele argumenta que, embora as teorias de multiverso pareçam atacar a “sintonia fina” (se existem vários universos, seria bem mais fácil que um deles fosse adequado para a vida por mero acaso), na verdade, elas a mantêm. Na maioria dos modelos matemáticos de multiverso, alega, nenhum dos múltiplos universos teria condições de acomodar vida inteligente. Não sobraria muita escapatória a não ser aceitar que a realidade é “ajustada” para o surgimento da vida.

Benett

Como fiquei com algumas dúvidas, falei com o professor O’Connor depois que as atividades do dia terminaram. Ele acha que a ciência pode demonstrar, no futuro, que algumas daquelas circunstâncias em que há sintonia fina derivem umas das outras, mas não acha que o argumento da sintonia fina desaparecerá totalmente. Na sessão de perguntas que é feita com todos os palestrantes do dia, depois do jantar, ele também rejeitou a noção de que a sintonia fina seria “Design Inteligente para astrofísicos”. O’Connor argumentou que o DI exige uma série de intervenções pontuais no meio de um processo (no caso, de modificação das espécies), o que não acontece na sintonia fina, em que todas as constantes que permitem o surgimento da vida estão presentes desde o começo.

Marcio Antonio Campos/Gazeta do Povo
Diz a lenda que, depois de fazer sua grande descoberta, Arquimedes saiu correndo nu pela cidade; já Watson e Crick atravessaram a rua e foram ao pub.

Depois do almoço tivemos a chance de fazer um passeio temático por Cambridge. Pudemos conhecer alguns locais ligados a grandes descobertas, como o bar onde Watson e Crick anunciaram que haviam “desvendado o segredo da vida”, referindo-se ao DNA. Vimos o que dizem ser uma descendente da árvore à beira da qual Newton meditava quando do tal episódio da maçã. Fora alguns causos curiosos dos alunos locais.

À tarde, Nidhal Guessoum voltou para falar do Islã, dessa vez em relação às tecnologias modernas. Ouve-se falar pouco em “tecnologia e religião”, que na verdade é um subconjunto de “ciência e religião”, mas na verdade a tecnologia muitas vezes está mais presente na vida das pessoas que a ciência, e isso também afeta sua religião. Guessoum reconhece os inúmeros benefícios da tecnologia, mas aponta perigos como o de se deixar dominar pela tecnologia (e ainda por cima gostar disso) e o do “might is right”, a noção de que qualquer coisa tecnologicamente possível é moralmente lícita.

Guessoum deu uma série de exemplos prosaicos, como uma fatwa declarada no Egito que proibia o uso de versos do Corão como ringtones de celular, ou os perfis no Twitter de líderes muçulmanos mortos, com “citações do dia” (existe a mesma coisa com santos católicos). É sadio usar as redes sociais para ajudar as pessoas a viver melhor suas devoções, mas também há o risco do peer pressure (você precisa ter aquele smartphone ou aquele aplicativo porque “todo mundo tem”) e de uma certa comercialização da fé.

Quanto às redes sociais, Guessoum reconhece seu papel positivo ao permitir a maior exposição de ideias, especialmente aquelas que em outras circunstâncias seriam barradas em alguma instância (no caso islâmico, Guessoum diz que isso ajudou os liberais; no catolicismo brasileiro, acho que beneficiou os conservadores; pergunte-me como); aumentou a consciência de diversidade e ampliou a participação da mulher. Mas, por outro lado, a fragmentação deixa uns confusos e permite que outros, diante de uma questão, procurem na internet até achar uma resposta que lhes agrade. Além disso, parece haver uma guetização, em que as pessoas, em vez de buscar pontos de vista diferentes, procuram os que pensam parecido para reforçar suas convicções.

Em resumo, o Islã não é resistente às novas tecnologias, diz Guessoum, mas defende o uso com moderação.

Quem encerrou o dia foi Ted Peters, do Pacific Lutheran Theological Seminary. O teólogo falou sobre a Astroética e a procura por vida inteligente. Na verdade, foi uma pena que ele tenha optado por não falar das implicações teológicas da descoberta de vida inteligente fora da Terra (os ETs seriam virtuosos ou pecadores? Cristo precisaria se encarnar tantas vezes quanto houvesse civilizações aliens? Como ficaria a questão da dignidade humana?). Em vez disso, ele tratou de outros assuntos, como o space junk, as iniciativas para colonizar Marte e os protocolos do Seti (o grupo de busca por ETs inteligentes da Nasa), por exemplo o que determina aviso imediato aos governantes de todos os países do mundo em caso de contato alienígena.

Peters expôs alguns pressupostos da Astrobiologia (a química que apoia a vida na Terra pode ser encontrada em qualquer lugar do universo; a evolução cósmica leva à vida, e depois à inteligência e à tecnologia; os otimistas, que acham que não estamos sozinhos, têm razão; e o contato leva à interação), e depois passou a elencar uma série de questõs, sem se propor a oferecer respostas. Quais seriam as questões éticas envolvidas se achássemos ETs inferiores a nós? E se fossem de inteligência equivalente? E se fossem superiores? Viriam pacificamente ou violentamente? Se fossem inferiores, aplicaríamos a eles a ética do tratamento a animais? Se fossem superiores, seriam “salvadores”, trazendo soluções para os problemas do mundo? Não nego que são questionamentos interessantes, mas, como eu disse mais acima, preferia a outra discussão.

Amanhã é dia de discutirmos Biologia e evolução.

Aviso: o blogueiro viajou para a Inglaterra graças a uma bolsa concedida pelo Instituto Faraday.

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