Algumas circunstâncias interessantes atrapalharam a atualização do blog ontem à noite (não é sempre que você é convidado para ficar discutindo filosofia numa mesa de pub com PhDs em Cambridge, certo?). Mas estou tirando o atraso. Não sei se é um padrão, mas de novo a palestra mais densa de ontem no curso aqui no Faraday Institute for Science and Religion foi a segunda aula da manhã. O tema do dia foi Biologia e evolução.
Keith Fox, ex-aluno de Cambridge e professor de Ciências Biológicas na Universidade de Southampton, abriu o dia com o tema “Criação e evolução”. Uma palestra até que leve, que começou lembrando que todo cristão é um criacionista, por crer que Deus criou o universo, mas hoje o termo só se aplica mesmo a quem nega a evolução. Na verdade, o que é necessário a um cristão é crer que a criação é distinta de Deus, dependente de Deus e tirada por Ele do nada. E isso não impede de forma alguma a aceitação da seleção natural.
Fox apresentou rapidamente algumas das evidências em favor da evolução e passou para algumas das objeções mais comuns, desde o “é só uma teoria” (embora o uso científico do termo signifique bem mais que “apenas uma boa ideia”) até os buracos no registro fóssil, que aos poucos vão sendo preenchidos, como por exemplo o Tiktaalik. Fox também lembrou que, embora as mutações genéticas sejam aleatórias, a seleção natural é perfeitamente ordenada.
O biólogo apresentou, depois, as reações mais comuns à evolução. Uma delas é o ateísmo (e tanto um Richard Dawkins como um Ken Ham concordam que a evolução conduz ao ateísmo, no que estão bem enganados), embora Fox argumente que uma reação bem mais intelectualmente honesta seria o agnosticismo; sobre o criacionismo de Terra jovem, ele diz que torna muito mais fácil ler os capítulos 1 a 3 do Gênesis, mas dificulta todo o resto, e ainda por cima inclui a figura de um Deus enganador, que faz o mundo só parecer ser velho; o Design Inteligente, diz Fox, só tem o mérito de desafiar a ciência, porque, fora isso, não deixa de ser o recurso ao Deus das lacunas, procurando a divindade no que a ciência não explica; a última reação, que Fox adota, é chamada por ele de “evolucionismo teísta”, que não é uma teoria, mas um modo de ver as coisas que se resume na frase do bispo anglicano Temple (do fim do século 19): “Deus fez as coisas se fazerem a si mesmas”.
Fox admite o desconforto de muitos cristãos com Darwin, seja pela associação indevida com o ateísmo, seja por barbaridades pregadas “em nome” da evolução, como a eugenia. Nesse caso, é preciso fazer um esforço para separar uma coisa da outra, já que a evolução não prescreve nada e não faz avaliações morais. A aula terminou com as contribuições da evolucão para a teologia da criação, como a rejeição do deísmo (o “Deus relojoeiro” de Paley), o reforço da noção de que Deus sustenta o universo em vez de ficar brincando com ele, e um status mais especial do ser humano, já que Fox considera muito mais interessante ser o alvo de um longo processo evolutivo que ter sido feito de barro.
Biólogo e doutor em Filosofia Moral, David Lahti, do Queens College (Nova York) fez uma dobradinha: no fim da manhã, tentou responder a uma pergunta complicada: o comportamento humano está nos genes? Na verdade, é um grande “mais ou menos” ou “depende”. A formulação preferida de Lahti é “os genes e o ambiente moldam o comportamento através do desenvolvimento”. Lahti explicou conceitos como os de plasticidade, em que o mesmo genótipo produz resultados diferentes; deu exemplos como os das crianças que se tornam incapazes de emitir certos fonemas se não os tiverem ouvido até uma certa idade, ou o caso dos dedos longos do compositor Franz Liszt; e explicou que é melhor imaginar que, em vez de controlar características, os genes controlam o desenvolvimento do organismo.
Obviamente há muita coisa gravada nos genes, como o ritmo de atividade diária (nossa tendência a ser mais “do dia” ou “da noite”) ou doenças; outras coisas não dependem em nada da genética, como o comportamento monogâmico ou poligâmico, que Lahti atribui a convenções sociais, assim como os papéis profissionais de acordo com o sexo; e ainda há a interação entre genética e ambiente, como nosso gosto pelo açúcar (que fornece carboidrato), combinado com a oferta abundante que existe dele atualmente. Lahti ainda disse que provavelmente nenhum comportamento humano recente (leia-se “com alguns milhares de anos”), incluindo a religião, tem componente genético, porque tais modificações exigiriam períodos de tempo bem mais longos.
Em resumo, o que Lahti afirma é que as origens do comportamento humano estão tanto na genética quanto no ambiente, e na influência mútua exercida por ambos. No entanto, o ser humano é capaz de contrariar tanto genética quanto cultura, porque tem livre arbítrio (que é um outro assunto, para ser discutido hoje).
À tarde, Lahti voltou para comentar outra pergunta: a religião evolui? Primeiro, diz, é preciso esclarecer do que estamos falando. Se for de evolução da religião, pode ser a capacidade de sermos religiosos, elementos universais culturais ou manifestações culturais particulares; se for a evolução da religião, podemos estar falando de mudanças genéticas ou culturais. Lahti escolhe o caminho dos elementos universais culturais para traçar um panorama histórico dividido em fases.
A primeira é a da “sociedade pré-moral”, que durou até 100 mil anos atrás. Ela foi seguida pelo que Lahti chama de “moralidade paroquial”, o seguimento de regras básicas de conduta, e pelo “animismo pré-religioso”, com o reconhecimento de divindades que precisam ser agradadas de um jeito ou de outro. É nessa época, que vai de 100 mil a 40 mil anos atrás, que surgem elementos como comunicação verbal, hierarquias, enterros, cuidado com os velhos e doentes, ferramentas e migrações. Já entre 40 mil e 12 mil anos atrás, surge a “religião paroquial”, com a difusão das moralidades facilitada pela interação entre grupos sociais, e o surgimento da arte e de enterros ritualizados.
De 12 mil anos atrás até hoje, estamos vivendo a etapa da universalização da moralidade e da religião. A agricultura prendeu o homem à terra; animais foram domesticados e surgiu a escrita; a natureza deixou de ser divinizada para ser encarada como criação. Haveria uma nova fase? Lahti acha que sim, e que estamos entrando nela: o tempo em que a posição religiosa é mais uma decisão individual que algo influenciado pelo grupo. Hoje é muito mais fácil seguir uma religião diferente daquela da família ou da comunidade, ou até mesmo não crer em nada. Mas Lahti ressalta que não é adepto de um progressivismo, e prefere esperar para ver se as mudanças serão para melhor ou pior.
Ernest Lucas, que foi bioquímico antes de estudar Teologia em Oxford e virar pastor, ofereceu um guia para a leitura dos três primeiros capítulos do Gênesis. Para ele, os cristãos costumam fazer as perguntas erradas diante desses textos. O que realmente importa é: que linguagem está sendo usada? De que tipo de litreratura se trata? Para quem se dirige? Qual o propósito do texto? Qual o conhecimento extrabíblico relevante?
O primeiro relato analisado por Lucas é o de Gênesis 1,1 a 2,3. Bem antes da revolução científica do século 17, os comentaristas já viam a necessidade de interpretar o texto como linguagem figurada. Orígenes, em 220 d.C., identificava a contradição de ter o dia e a noite criados antes do Sol e da Lua. Calvino, no século 16, dizia que quem quisesse aprender Astronomia devia ir a outro lugar, e não à Bíblia.
Lucas diz que, para o público-alvo de hebreus da Antiguidade, a função do texto era mostrar como a sociedade surgiu; uma dramatização (e o texto tem elementos que o tornavam ideal para o uso litúrgico) que mostrava um mundo ordenado, em que tudo tem sua função. O objetivo do texto, diz Lucas, é fazer o leitor entender verdadeiramente a natureza e o propósito da criação.
Já o segundo relato (Gênesis 2 e 3) tem uma linguagem mais antropomórfica, que os comentaristas também sempre analisaram como sendo figurativa, e uma estrutura mais simétrica, desde o momento em que Deus coloca o homem no paraíso até a expulsão de Adão e Eva, aponta Lucas. O texto também traz mais imagens culturais, como a do paraíso bem irrigado, o que tinha um grande apelo para uma sociedade agrária. Já o objetivo deste segundo relato é mostrar a natureza e o propósito do ser humano, como companheiro de Deus (e não seu escravo, como em alguns relatos mesopotâmicos) e responsável por cuidar da criação.
No fim, a moral da história é: há um Criador autoexistente e racional; a criação é ordenada e planejada (assim, há leis na natureza); o homem é imagem de Deus (e por isso é capaz de conhecer as leis); e a criação é um ato livre de Deus (assim, observação e experimento são necessários para esse conhecimento das leis).
Também não posso deixar de mencionar o passeio que fizemos na tarde de ontem: fomos à biblioteca central da universidade para ver alguns dos “Darwin papers”: cartas escritas por e para ele, livros que foram de Darwin (com anotações nas margens das páginas), cadernos de notas e até caricaturas da época das primeiras controvérsias sobre a evolução. Definitivamente, um privilégio.
O tema das aulas de hoje é neurociência. Se ninguém quiser continuar a conversa filosófica no pub, espero ainda na noite de hoje colocar o resuminho aqui.
Aviso: o blogueiro viajou para a Inglaterra graças a uma bolsa concedida pelo Instituto Faraday.
A votação para a edição 2011 do Prêmio Top Blog vai até 11 de outubro. Ano passado, o Tubo de Ensaio, concorrendo na categoria “religião/blogs profissionais”, foi o vencedor pelo voto popular. Vamos tentar o bicampeonato e buscar melhorar a posição no júri acadêmico, em que o Tubo terminou em terceiro lugar na edição 2010. Para votar, clique aqui, ou no selo ao lado. À medida que outros blogs da Gazeta do Povo forem se inscrevendo no prêmio, vocês saberão aqui como votar neles também.
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