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Direto de Cambridge: dia 4
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É, está acabando o curso aqui, infelizmente. Ontem tivemos uma série de debates fascinantes sobre neurociência e temas correlatos. E o tempo abriu justamente durante o passeio de barco pelo Rio Cam! Dessa vez os PhDs resolveram deixar o bar de lado e partiram para uma jam session na Sala de Música aqui do St. Edmund’s College, o que explica o timing dessa postagem…

O cérebro, tradicionalmente entendido como a sede da consciência, de pensamentos, emoções e ações, é uma máquina? Peter Clarke, da Universidade de Lausanne (Suíça), conseguiu seu doutorado examinando as respostas elétricas do cérebro; antes de ir para a Biologia, foi engenheiro, então ele conhece um pouco sobre máquinas. E realmente existe uma certa similaridade, já que cérebro e máquina são feitos de pedaços pequenos que, por sua vez, são compostos por átomos e moléculas, que estão sujeitos a leis.

Clarke segue mencionando pesquisas sobre estimulação elétrica no cérebro, mas lembra tanto teístas quanto ateus têm suas reservas em relação à ideia de que a mecânica é capaz de explicar a psicologia humana. De fato, se o cérebro for uma máquina, isso levanta uma série de questões. A relativa ao livre arbítrio veremos mais abaixo. Um tema que interessa aos teístas é o da alma, mas a abordagem depende de a pessoa adotar o dualismo (alma e corpo como entidades separadas) ou o monismo. Clarke argumenta que a Bíblia não defende o dualismo e está longe de um conceito platônico de alma eterna e imortal, o que criaria um problema aparente relativo à crença na ressurreição dos mortos: se eu ganho um novo corpo, mas não tenho uma alma eterna e imutável, como continuo sendo eu? Clarke responde que para haver continuidade na identidade, não seria preciso haver continuidade na matéria; basta manter a estrutura relevante do ponto de vista da informação (admito que tenho um punhado de dúvidas e reservas quanto a isso).

De qualquer modo, diz Clarke, mesmo que o cérebro seja uma máquina, não siginfica que seja apenas uma máquina. Isso, sim, seria apelar ao reducionismo, que Clarke chama de “nothingbuttery”, o “nada mais que” (no caso, nada mais que átomos e moléculas). O amor deve mesmo ser reduzido a pura atividade elétrica neural?, questiona. O professor finaliza argumentando que a analogia do cérebro como máquina não diminui nossa espiritualidade ou nossa humanidade, porque ela encontra paralelos com o ensinamento cristão sobre o homem. Máquinas são feitas por um criador com um propósito, e o conhecimento das partes é diferente da compreensão da função, tanto da máquina quanto do homem. Máquinas são feitas de acordo com um projeto (no caso do homem, o modelo seria Cristo), podem apresentar defeitos e deixar de cumprir sua função (que Clarke equivale ao pecado, e a deixar de refletir Cristo), mas podem ser consertadas, assim como o ser humano também pode se emendar.

Em seguida, o filósofo Tim O’Connor, da Universidade de Indiana, trouxe o tema do livre arbítrio. Temos (e até a mosca da fruta tem)? Não temos? Se não temos, o que isso significa? O’Connor adverte contra um tipo de reducionismo segundo o qual “é nas partezinhas que a ação realmente acontece”. Ele prefere o emergentismo, no qual a matéria passa para uma fase de ação consciente, uma categoria distinta de ser que é capaz de pensar, ter emoções e ação intencional; daí surge o ser humano como um tipo particular de ser consciente, com capacidades privilegiadas de pensamento, emoção e ação. E, nessa condição, funcionamos em um nível diferente, com “regras” diferentes.

O’Connor diferencia entre ações minimamente voluntárias, aquelas que fazemos quase sem pensar (como ir até o ponto de ônibus ao lado de casa), urgências ou desejos de fazer algo, e o “querer”, que ele define como a formação consciente de uma intenção de agir, algo com propósito e dirigido ao presente ou ao futuro. O filósofo ainda apresentou exemplos de algumas pesquisas que mostram influências nas escolhas e até mesmo na crença de que alguém tomou uma decisão que na verdade não tomou.

Agência Brasil
Jânio: teórico do livre-arbítrio? Não exatamente…

O que O’Connor explica é que o livre arbítrio é bem mais complexo que um mero “fi-lo porque qui-lo”; na verdade, é até bom que muitas das nossas ações sejam automáticas, porque do contrário isso exigiria um tremendo esforço mental diário. Um modelo cientificamente aceitável do livre arbítrio, diz, considera que ele tem diversos níveis, e pode variar muito ao longo do tempo e de acordo com cada indivíduo; decisões passadas influem nas presentes, e existem inclusive ações mais, digamos, “inconscientes” que levam em conta fatores já internalizados no indivíduo que ele endossaria se estivesse consciente deles.

Ou seja, a neoriciência tem muito a ensinar sobre a extensão e o âmbito da liberdade humana, a partir do momento em que deixamos de pensar que é apenas “sim” ou “não”. A liberdade humana é frágil, limitada e variável.

Eu me reservo o direito de comentar só de passagem a aula do teólogo Marc Cortez. O título parecia bem chamativo (Embodied souls, ensouled bodies), mas no fim era algo parecido com uma análise das características da humanidade de Cristo, e como isso era compatível (ou não) com as diferentes correntes de monismo/dualismo. Foi basicamente uma aula de Antropologia Teológica, sem dúvida interessante, mas fiquei me perguntando onde ela se encaixava no esquema geral do curso.

O neurologista Alasdair Coles fechou o dia com informações bem curiosas sobre o cérebro de quem é religioso. Se olhássemos o cérebro de quem tem uma experiência religiosa, o que veríamos? Nada? O mesmo que em qualquer outra pessoa? Algo diferente? Ou algo extraordinário? Coles iniciou com uma distinção importante entre estrutura e função do cérebro. Se falarmos de estrutura, uma pesquisa interessante é a que mostra que o hipocampo de taxistas londrinos cresce com o tempo de profissão. Mas o cérebro de um “rezador compulsivo” continua igual.

Sobra a questão da função (aquelas imagens coloridas que vemos, em que as áreas vermelhas são as que estão “funcionando” mais), existem muitas pesquisas, e Coles nos mostrou algumas. Uma delas, muito curiosa, pegou 12 ateus e 12 católicos e deu choques neles enquanto mostrava imagens ou da Virgem Maria ou de uma outra figura feminina qualquer tirada de uma pintura. Os católicos que eram eletrocutados enquanto viam Nossa Senhora disseram ter sentido menos dor. É suficiente para dizer que a fé pode regular a dor? Coles diz que faltam outros testes (ele sugeriu fazer a mesma experiência substituindo os católicos por fãs da Kylie Minogue e a imagem da Virgem pela da cantora australiana e comparar os resultados).

Steve Greer/iStockphoto
Só de olhar, não há o menor jeito de saber se o cérebro é de alguém religioso ou não.

Uma outra pesquisa mostrou que as pessoas lidam com convicções morais e religiosas da mesma maneira como lidam com questões objetivas. Várias pessoas tiveram de dizer “verdadeiro” ou “falso” a três tipos de afirmações. As áreas do cérebro que “acendiam” ao declarar errada uma conta matemática eram as mesmas que funcionavam mais quando alguém dizia ser falsa uma proposição moral ou religiosa. Mais ainda: as áreas acionadas eram as mesmas que respondem pela sensação de prazer (no caso das afirmações consideradas verdadeiras) e de repulsa, para as frases julgadas como falsas.

Coles diz que a anatomia do cérebro religioso não tem nada de especial; as áreas ativadas são as mesmas que respondem por outras atividades. A pergunta que Coles gosta de ver todos fazendo é “e daí?”. E daí que, se não há nada de particular no cérebro que facilite a religiosidade, qualquer um tem as ferramentas mentais para ser religioso. As conclusões que Coles apresenta são: o cérebro está envolvido na religiosidade; a religião é “natural”, biologicamente falando; partes diferentes do cérebro são responsáveis por aspectos diferentes da religiosidade; o toolkit religioso é feito de partes normais do cérebro (não existe um “God spot”). Assim, nada catastrófico ou espetacular precisou acontecer no cérebro para que o homem desenvolvesse o senso religioso.

Aviso: o blogueiro viajou para a Inglaterra graças a uma bolsa concedida pelo Instituto Faraday.

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