Na segunda-feira, a Nature, quem diria?, publicou uma longa reportagem sobre “como cientistas religiosos equilibram trabalho e fé”. A reportagem se baseia no longo e excepcional trabalho de Elaine Howard Ecklund, que há muitos anos se dedica a pesquisar as crenças religiosas dos cientistas e como eles enxergam a fé (a sua, a dos outros, o que for). Ela entrevistou milhares de cientistas em vários países, dos mais secularizados aos mais religiosos. Algumas das suas descobertas já receberam bastante divulgação – por exemplo, a de que a proporção de cientistas que têm fé religiosa, embora menor que a média da população geral, é maior do que se costuma imaginar: 30%, em um dos seus estudos. A reportagem da Nature entrevistou cinco desses cientistas – um hindu, um muçulmano e três cristãos –, que contaram sua experiência pessoal.
O que eu gostaria de destacar, no entanto, é outro aspecto. Nesta época em que tanto se fala de diversidade, equidade e inclusão, em acolher no ambiente profissional todas as pessoas, independentemente de gênero, cor da pele, orientação sexual, etc. etc., há um grupo que, em muitos países, não se sente bem-vindo: o dos religiosos no mundo da ciência. Reparem que eu escrevi que tal grupo “não se sente” bem-vindo, mas não que “não é” bem-vindo. Isso porque Ecklund descobriu algo bastante curioso: que cientistas ateus não são tão hostis a seus colegas religiosos quanto parece, a ponto de dois terços dos entrevistados por Ecklund em 2016 não crerem que haja um conflito entre ciência e fé – se lembrarmos que os cientistas religiosos são 30%, é só fazer as contas e concluir que há um contingente significativo de ateus nesses dois terços.
O problema é que, especialmente em países como os Estados Unidos e o Reino Unido, essa tolerância está muito longe de ser percebida tanto por cientistas religiosos quanto por pessoas de fé que estejam considerando uma carreira no campo das ciências. “Acho que existe uma percepção de que outros cientistas não vão levar você a sério se você falar sobre sua fé”, disse Ecklund à Nature, acrescentando que alguns de seus entrevistados só se abriram completamente sobre sua religiosidade porque as entrevistas eram confidenciais. Uma personagem da matéria da Nature, britânica, afirmou ter precisado manter sua fé oculta no começo da carreira. “Você vive duas vidas – não quer arriscar sua credibilidade científica ao abrir o jogo sobre sua religião”, ela disse. Não chegou a comentar se isso teve algum efeito sobre sua saúde mental, mas não é difícil imaginar que essa “vida compartimentalizada” cobre seu preço, ao menos para alguns.
E o que acontece, no fim, é que a cultura do “ateísmo assumido” acaba se impondo, como descobriu o sociólogo Christopher Scheitle, também ouvido pela Nature. Pós-graduandos nas áreas de ciências se sentem levados a esconder sua religiosidade – uma delas chegou a dizer que só pretendia assumir sua fé quando tivesse uma carreira estabelecida, temendo que, se fizesse isso antes, não seria mais levada a sério. Por outro lado, essa cultura significa que uma minoria de cientistas ateus se sente à vontade para fazer todo tipo de comentário preconceituoso sobre a fé e sobre os crentes, o que só acaba reforçando a ideia de hostilidade generalizada do mundo da ciência em relação à religião.
Mesmo tendo percebido uma abertura à tolerância, Ecklund também reconhece o efeito da cultura do “ateísmo assumido” ao afastar pessoas religiosas da ciência, “seja por achar que quem tem fé não pode ser cientista, seja por sentir que precisarão esconder que são religiosas”. A ironia, diz Ecklund, é que entre os grupos que mais tendem a ser religiosos estão as mulheres e os negros, que a comunidade científica quer atrair, mas que não abraçarão carreiras na ciência se acharem que seus colegas ridicularizarão aquilo que lhes é mais caro.
Obviamente não há demérito algum em um cientista que tem fé religiosa. Ele usa os mesmos instrumentos dos colegas ateus, pesquisa os mesmos assuntos dos seus colegas ateus, tem o mesmo rigor metodológico dos seus colegas ateus. Só o que se pede do cientista é honestidade intelectual, e aí pouco importa se tem fé ou não, se é branco, preto, verde ou roxo, homem ou mulher, do que gosta ou deixa de gostar. No máximo, o cientista religioso enxergará seu trabalho como uma forma de compreender como Deus cria ou age, mas isso em nada influencia a sua prática diária no laboratório ou na universidade.
Então, se realmente há uma maioria de cientistas não religiosos que compreende isso e está aberta a conviver tranquilamente com seus colegas que têm fé, eles precisam urgentemente começar a falar, em vez de deixarem os cientistas adeptos do confronto ridicularizarem a crença alheia e dizer que “há cientistas que dizem ser crentes, mas ou não são crentes ou não são cientistas”, como afirmou dias atrás uma neurocientista espanhola ao El País em uma entrevista desastrosa. O mesmo empenho que existe em abrir os braços a outros grupos – mulheres, negros, LGBTs etc. – precisa existir também para deixar claro que os religiosos são tão bem-vindos quanto todos os outros no mundo da ciência. Do contrário, todo esse papo de diversidade fica incompleto.
Curso sobre ciência e religião na escola
O Instituto Para a Integração do Saber (Ipis), da Universidade Católica de Salta, na Argentina, abriu inscrições para um curso sobre “Ciência e Religião na Escola”. Ele terá quatro encontros presenciais – o primeiro deles na próxima sexta-feira, 31 de maio –, mas pode ser acompanhado de forma remota também. O curso será ministrado por Verónica Figueroa, diretora do Ipis; por Karina Purita; e pelo padre jesuíta José Funes, ex-diretor do Observatório Vaticano. O curso custa 30 mil pesos argentinos – R$ 174 no câmbio oficial.
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