Na sexta, enquanto eu estava ocupado formatando para publicação a lista de cientistas queimados pela Inquisição, fiquei sabendo da publicação (em 9 de maio) de um artigo chamado The New War Between Science and Religion, de Mano Singham, escritor, blogueiro e professor de Física. O artigo é interessante e merece comentário não porque seja exatamente bom, ou porque eu concorde com ele. Mas porque está cheio de espantalhos. Aqui vamos derrubar alguns deles.
Andrew Dickson White e John Draper fizeram o melhor que podiam para inventar uma guerra entre ciência e religião, lá no século 19, que é para onde o ateísmo militante acaba levando seus seguidores (embora pretenda estar levando-os para o século 21, como comentei numa resenha de livro publicada na Dicta&Contradicta). Graças a uma estratégia goebbeliana de repetição, essa lorota conseguiu se sustentar até pouco tempo atrás, quando historiadores da ciência como Ronald Numbers começaram a mostrar que não era bem assim que a banda tocava. Na medida em que pipocavam cientistas que, além de competentes em seus campos de pesquisa, ainda eram pessoas de fé (como Francis Collins ou Kenneth Miller), o ateísmo militante precisou procurar outra coisa para brincar, e parece que achou.
O novo conflito, diz Singham, não é mais “ciência vs. religião”, e sim o dos “acomodacionistas” contra os, hm, como poderíamos chamá-los, “conflitistas”? Como já vimos anteriormente, “acomodacionista” é o insulto da vez, normalmente lançado pelos ateus militantes contra os que defendem qualquer espécie de convivência pacífica entre ciência e fé. Já os “conflitistas” (na falta de neologismo melhor), como o próprio nome diz, renegam essa possibilidade de conciliação.
Eu vejo duas grandes diferenças entre o conflito “ciência vs. religião” e o conflito “acomodacionistas vs. conflitistas”. A primeira diferença: enquanto a guerra entre ciência e fé era uma invenção, o segundo conflito é real. De fato esses dois campos estão se pegando na arena da opinião pública, e são posições incompatíveis entre si. A segunda diferença é que a escalação de ambos os lados muda um pouco. Os “acomodacionistas” podem incluir tanto pessoas religiosas (Karl Giberson me vem à mente agora) quanto ateus e agnósticos (como, arrisco dizer, Michael Shermer, que comeu o pão que o diabo amassou ano passado por causa de um texto sobre evolução; ou Chris Mooney). O mesmo vale para os “conflitistas”: embora a maioria deles pertença ao ateísmo militante, não vejo razão para não colocar, por exemplo, um criacionista de Terra jovem no mesmo saco, embora Singham não mencione “conflitistas” religiosos.
Até aí, vá lá. Mas Singham escorrega logo de cara ao dizer que o “primeiro” conflito já está encerrado, com a vitória da ciência no Dover trial de 2005. Balela. Primeiro, porque não se encerra o que nunca existiu (a não ser, é claro, na cabeça de alguns); segundo, porque os assuntos envolvendo ciência e fé não se resumem ao debate sobre a teoria da evolução; e terceiro, porque a derrota no tribunal não significou o fim dos adversários da evolução, que seguem por aí firmes e fortes. Fico me perguntando se essa nova polêmica em torno do “acomodacionismo” não é uma estratégia do ateísmo militante para desviar a atenção do fato, cada vez mais evidente, de que não havia, no fim das contas, conflito algum entre ciência e fé…
Singham parte para o ataque contra a Academia Nacional de Ciências (NAS) norte-americana, que, segundo ele, estaria se tornando acomodacionista. Ele questiona essa tomada de posição e a atribui meramente a estratégia política. Afinal, assumir o “conflitismo” poderia afastar da ciência até mesmo os crentes “moderados”. O articulista, então, condena a NAS dizendo que considerações políticas não deviam influenciar a entidade. Singham está claramente exlcuindo a hipótese de que a NAS afirmou não haver conflito entre ciência e fé por realmente acreditar nisso. Afinal, admitir que uma entidade relevante como a NAS esteja adotando uma posição acomodacionista de boa fé seria um golpe duro nos “conflitistas”.
E os espantalhos começam a se acumular. Singham diz: Como o apelo poderoso da religião vem precisamente de suas alegações de que a divindade intervém no mundo físico, respondendo a orações e similares, as alegações religiosas também estão sob o domínio da ciência. A única divindade sobre a qual a ciência não pode dizer nada é uma divindade que não faz nada. Isso é simplificar demais a religião, já que ela não se resume a esse tipo de afirmação. Algumas religiões ou denominações religiosas podem, sim, se basear exclusivamente nisso (como a “teologia da prosperidade”), mas o universo da religião é muito mais amplo que o mero “pedi e recebereis” dos Evangelhos, e inclui uma relação entre Deus e o mundo que certamente vai além de “não fazer nada”. Quando deu entrevista ao Tubo, o padre George Coyne disse que Deus sustenta a existência do universo. É uma ação imperceptível mas que está bem longe de “não fazer nada”. O Deus que não faz nada, que só deu um peteleco inicial no mundo e foi descansar, é aquele dos deístas do passado, e não o dos cristãos (de nenhuma época).
Ao comentar outro famoso julgamento, o Scopes trial, Singham acusa os acomodacionistas de, basicamente, não saberem levar na esportiva as diatribes dos adversários. Por trás dessas acusações [de que Dawkins e companhia ridicularizam a crença religiosa] parece estar a convicção de que é falta de educação até mesmo questionar crenças religiosas ou desafiar o ponto de vista dos acomodacionistas. Aparentemente, a coisa educada a fazer é se calar, diz. Mais uma vez Singham faz uma caricatura pobre dos acomodacionistas. O desprezo do ateísmo militante pela religião é absurdamente evidente. Dawkins é mestre em ridicularizar quem acredita em Deus (e aqui no blog temos vários discípulos dele entre os comentaristas, não é verdade?). Aliás, o ateísmo militante é tão autofágico que ele não poupa nem ateus/agnósticos que mostram posições acomodacionistas (de novo recordo o episódio envolvendo Michael Shermer ano passado). Se o ateísmo militante quer debater, duvido que um acomodacionista fugiria da briga. Mas como debater se o outro lado só sabe recorrer à agressão?
Singham segue com os espantalhos quando diz: É estranho que a frase “respeito pela religião” tenha passado a significar que crenças religiosas deveriam estar isentas de um escrutínio rigoroso ao qual outras crenças estão sujeitas. Tal atitude infantiliza os crentes, sugerindo que suas visões não podem ser defendidas e só podem ser preservadas silenciando-se aqueles que discordam. “Respeito pela religião” significa exatamente isso: respeito, justamente o que falta ao ateísmo militante, que aqui se faz de vítima. Combater a ridicularização não é querer o fim do debate, e sim que o debate se dê em outros termos. Prova de que os crentes não fogem do debate é a série de discussões públicas promovidas nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Aqui mesmo no Tubo já coloquei vídeos de algumas dessas discussões.
No fim, assim como declarou a “vitória da ciência sobre a fé”, Singham prevê a vitória de sua posição “conflitista”. A ciência continuará sua marcha inexorável, tornando altamente provável que a estratégia acomodacionista falhe, afirma. Bom, no passado já se fez todo tipo de previsão sobre o fim da religião ou de certas religiões em particular. Que eu saiba, nenhuma delas se realizou. Posso dizer que o retrospecto é desfavorável a Singham?
Ah, antes que alguém pergunte, pelos critérios de “acomodacionista” e “conflitista” enunciados aqui, obviamente esse blog se alinha ao primeiro grupo. Só para ninguém dizer, na caixa de comentários, que não sabia…
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Adendo, 20 de maio, 17 horas: questionado por um amigo, reparei que acabei não deixando claro o fato de que eu, pessoalmente, não gosto do termo “acomodacionista”. Não porque ele tenha sido cunhado pelo ateísmo militante, mas porque me parece pejorativo, como se promover a compatibilidade entre ciência e fé fosse algo como buscar a quadratura do círculo, ou como se a acomodação fosse uma espécie de mera tolerância entre ciência e religião. O que pretendi fazer foi jogar o jogo pelas regras do ateísmo militante, rebatendo os argumentos de Singham usando a terminologia própria do ateísmo militante (o que inclui o termo “acomodacionismo”). Sem dúvida, pelos critérios dos ateus, sou mesmo um acomodacionista. Pelos meus critérios? Sou mais que isso. Talvez fosse necessário um novo neologismo.
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