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O médico Christopher Kerr foi o principal convidado do 4.º Congresso Internacional de Saúde e Espiritualidade, realizado no fim de maio em Juiz de Fora (MG); no evento, ele deu uma das palestras principais, intitulada “Validando sonhos e visões na terminalidade”, e ainda participou de uma mesa-redonda sobre “Espiritualidade no fim da vida”. Na palestra, ele apresentou alguns dos casos descritos em Death is but a dream, livro que o leitor do Tubo conheceu duas semanas atrás, e deixou a plateia curiosíssima sobre suas descobertas em relação aos sonhos e visões que pacientes têm quando a morte se aproxima. Mais perto do encerramento do congresso, Kerr conversou comigo; falamos sobre seu livro, sobre algumas conclusões filosóficas que podemos tirar de tudo o que ele tem observado, sobre os limites da ciência, sobre o reducionismo materialista e sobre como a medicina lida com as questões do fim da vida.
Em sua palestra [no primeiro dia do Conupes] você disse que “desistiu de tentar entender” as experiências de fim da vida, e seu livro também tem essa tônica, de que sua intenção é que reconheçamos essas experiências, aceitemos que elas são reais, e as respeitemos. Se enxergarmos a ciência como uma busca por entender aquilo que observamos, essa atitude de “desistir de entender” e simplesmente aceitar não é um pouco estranha?
É o contrário. O paciente sofre quando ficamos tão absorvidos pelo fenômeno, buscando suas fontes, que no fim não somos capazes de entender aquilo pelo que ele está passando. O que temos de fazer é valorizar a experiência do paciente. Claro, em circunstâncias ideais seria ótimo se pudéssemos ir a fundo e buscar a origem ou a explicação do fenômeno. O problema é que olhamos para o processo de morrer como um buraco de fechadura, e lá dentro cada um vê o que quer ver, seja paranoia, seja religião, seja o além. Minha mensagem é a de que a morte é um mistério em si mesmo, e merece ser vista com reverência. E, tenhamos ou não todas as respostas, essa busca por racionalizar a morte a está invalidando; é como se, para o médico, a experiência do paciente tivesse menos valor só porque o médico não a compreende, e isso é péssimo. Temos dados mostrando que muitos pacientes relutam em contar suas experiências de fim da vida por medo de serem ridicularizados. Então, mesmo se continuarmos tentando entender o fenômeno, não devíamos dar mais valor a esse esforço que ao paciente, e devemos reconhecer que há coisas que não compreendemos totalmente.
Mas entendo que isso pode parecer contrário ao espírito que caracteriza a ciência. Seria “anticientífico”, ou “não científico”, então? Sim e não, porque você ainda pode validar cientificamente essas experiências se usar a metodologia correta. Se você percebe pontos em comum, se compila bem todos os dados, isso tem um valor. Mas, claro, também depende de como você define “ciência”.
“Não somos só impulsos elétricos. Somos mais que a soma de nossas partes. Veja, por exemplo, o papel da história emocional, da memória. Uma visão reducionista só vê a tinta e não a pintura.”
Christopher Kerr, médico com atuação em cuidados paliativos no fim da vida e autor de Death is but a dream
Depois de anos estudando as experiências de fim da vida, e considerando todas essas questões sobre mente, cérebro e consciência, quais são, a seu ver, as perguntas que a ciência pode responder – ainda que a resposta não exista hoje –, e quais as perguntas que estão fora do alcance da ciência?
À medida que nosso conhecimento das funções cerebrais aumenta, acho que provavelmente seremos capazes de definir melhor como funciona o cérebro de uma pessoa no fim da vida. Temos visto coisas interessantes: recentemente, estavam fazendo uma pesquisa com eletroconvulsoterapia, sobre convulsões durante o sono; um paciente morreu durante a pesquisa, e perceberam que houve uma elevação na atividade cerebral consistente com um aumento de percepção, como se fosse uma lucidez terminal. Então, sim, acredito que teremos acesso a mais informação no futuro. O problema é de ordem ética: é muito complicado aplicar as metodologias que usamos na maioria dos seres humanos quando se trata de alguém que está morrendo. Já aquilo que nunca conseguiremos entender será o papel da alma; isso vai permanecer em um nível mais abstrato, e é melhor que deixemos assim.
O que a sua experiência lhe mostrou a respeito do reducionismo materialista? Não passamos mesmo de um monte de impulsos elétricos em nosso cérebro, ou somos mais que isso?
Sou uma ótima pessoa para você fazer esse tipo de pergunta, porque passei anos no doutorado, estudando neurobiologia, neuroquímica no nível celular, mapeando peptídeos e neurotransmissores, olhando a eletrofisiologia da célula. Eu vivia em um mundo micro, e aí temos a história da floresta e das árvores. Você pode entender os anéis no tronco de cada árvore, mas isso não lhe ajuda a ver a floresta. Isso nos leva à distinção de “cérebro versus mente”, talvez incluindo a alma nesse debate. Não acho que veremos isso resolvido no futuro próximo.
Mas, respondendo à questão, não somos só impulsos elétricos. Somos mais que a soma de nossas partes. Veja, por exemplo, o papel da história emocional, da memória. Uma visão reducionista só vê a tinta e não a pintura. Há mistério e maravilhamento aqui, um ponto onde se passa do orgânico para o abstrato, e uma coisa não exclui a outra. De certa forma, parece a maneira como as pessoas entendem a fé: há uma linha a partir da qual a crença é algo assumido, e provavelmente é aí que eu paro.
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Veja só, eu entrei nessa área tentando entendê-la, e eu parti do pressuposto de que esse era um paradigma médico que tinha de ser resolvido, como o delírio. Mas o que mudou minha vida como médico foi perceber que a minha opinião era irrelevante, desde que o paciente estivesse sendo ajudado. E, enquanto eu estivesse travado, tentando enxergar tudo pela minha própria lente, eu jamais seria capaz de honrar, autenticar e validar a experiência do paciente. É aqui que entra, para mim, a questão da reverência.
Isso mudou a minha vida porque eu estava tendo problemas para ensinar; eu via nos meus alunos o mesmo problema que eu tive, porque vivemos em um mundo baseado em evidências, em que tudo precisa ser definido, visto, medido, analisado. Mas me doía ver que as experiências dos pacientes não estavam sendo validadas porque “não havia evidência”, e foi isso que me levou a fazer pesquisa. Ela começou justamente porque todos me diziam “não há evidência para isso”; as pessoas estavam tão travadas quanto eu estive um dia. Eu fui atrás da literatura médica e ela era bem interessante, mas, embora atestasse que esse fenômeno é multicultural e tem ocorrido em várias épocas, a maioria dos estudos se baseava na observação de terceiros. Para mim isso era um problema; algo tão subjetivo e íntimo tinha de ser perguntado diretamente ao paciente. O início foi com a mulher que perdeu seu bebê; como poderíamos nos recusar a validar o que lhe estava acontecendo? Ela estava encontrando mais conforto e cura neste processo interno que com qualquer coisa que nós estivéssemos fazendo, então vimos que o mínimo a fazer era não atrapalhar.
Seu livro foi publicado em 2020. Talvez três anos ainda sejam pouco tempo, mas já houve alguma mudança na prática médica ou nas faculdades de Medicina em relação a esse tema?
Nada. Na verdade está até piorando, ao menos em meu país, porque o cuidado médico está cada vez mais fragmentado. É uma linha de montagem, com inúmeras subespecialidades, inúmeros níveis intermediários de atenção médica e de enfermagem. Não existe mais o médico que acompanha toda a trajetória do paciente, toda a evolução da doença, ou que conhece bem a pessoa. Você faz uma intervenção pontual e passa o paciente adiante. As interações são baseadas em períodos de 15 minutos. E, se um paciente seu diz que está deprimido, você pensa “que droga!”, não porque você não se importe, mas porque tem de cair fora e enviá-lo para outro médico.
Mas não acho que os médicos sejam assim porque querem. Eles vão para a faculdade com a melhor das intenções, mas isso lhes é tirado enquanto eles estão lá. Há cada vez menos espaço para entender qualquer coisa que se assemelhe a algo espiritual ou existencial. Quando eu falo desse assunto em uma audiência de médicos, ninguém reage – as enfermeiras ao menos balançam a cabeça. Os únicos médicos que parecem saber do que estou falando são os que tiveram experiências pessoais a esse respeito. Eles entendem, mas só quando estão sem o jaleco.
“Vivemos em um mundo baseado em evidências, em que tudo precisa ser definido, visto, medido, analisado. Mas me doía ver que as experiências dos pacientes não estavam sendo validadas porque ‘não havia evidência’, e foi isso que me levou a fazer pesquisa.”
Christopher Kerr
Eu nunca recebi uma resposta da comunidade médica sobre a minha pesquisa, e o interessante é que eu segurei essa pesquisa por dez anos antes de começar. Eu desenhei o protocolo em 2000, mas não o levei adiante por muito tempo, porque achava que não teria nenhum valor para a comunidade médica. E, de fato, quem é que recomendava pacientes para o meu estudo? Era quem estava ao pé da cama do paciente: auxiliares, enfermeiras, capelães, pessoal do serviço social, que estavam ouvindo e vendo tudo. Médicos raramente encaminhavam pacientes para que eu os entrevistasse. Eu tenho muito mais fé no pessoal não médico, por exemplo os que providenciam cuidado espiritual.
E no livro eu digo que estava me preocupando com o público errado: quando a notícia do que eu estava fazendo chegou aos ouvidos dos não médicos, foi aí que tudo ganhou uma dimensão enorme. Isso, sim, mudou muito. Meu editor me disse que 15 anos atrás eu não teria como publicar um livro com “morte” no título. Mas, agora, a geração dos baby boomers não quer um médico que lhes impõe o que fazer de forma paternalista. Eles são consumidores de serviços de saúde e querem poder de decisão sobre os cuidados que receberão no fim da vida. Estamos vendo isso em death cafes [eventos em que as pessoas se reúnem para discutir a morte] e coisas parecidas. Há um movimento, fora do ambiente médico, para se incorporar os próprios valores no tratamento. Pacientes e suas famílias estão mais à vontade fazendo pressão. São essas pessoas – e não os médicos – que estão muito interessadas, são elas que estão levando esse tema adiante.
No capítulo sobre as crianças, você criticou a “linguagem belicista” que às vezes se usa quando tratamos de pacientes terminais. Ainda hoje costumamos dizer que certa pessoa “perdeu a batalha” contra o câncer. Por que você não gosta desses termos?
Acho muito inapropriado, e especialmente problemático quando se trata de câncer. Falamos em “batalha”, em “lutar”, em “derrotar” o câncer. São todas palavras de guerra. O problema está nas implicações disso. Nunca vi um paciente que não tivesse dado o seu melhor em busca da cura, mas essas escolhas de palavras acabam transmitindo valores que são incorretos. Meu pai morreu quando eu era um adolescente, e havia outdoors da Cancer Society em Toronto com esse tipo de linguagem. O que eu, um garoto, concluí? Que meu pai não tinha lutado o suficiente. Eu tenho câncer. A “luta”, o esforço, a dor e o sofrimento estão sempre lá. Mas, se eu sucumbir ao câncer, eu não “perdi uma luta”. Simplesmente há doenças que superam a maior das forças de vontade. Não precisamos disso de “lutar bem”, “lutar mal”, “perder a luta”, mas fazemos isso especialmente com o câncer, é uma cultura que às vezes escapa do controle, vira quase uma espécie de movimento. Existe uma subjetividade, um tipo de julgamento nessas palavras, mas eu nunca vi alguém que estivesse doente e não lutasse com tudo o que tem. Todos dão o seu máximo, o seu melhor. Lutar pela sobrevivência quando se está doente é um instinto natural, ninguém precisa ficar sendo pilhado para fazer isso.
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Um dos capítulos que mais me impressionaram é aquele com as histórias de Eddie [um ex-policial] e Dwayne [um ex-presidiário]...
Você viu o vídeo do Dwayne?
Não vi.
Tem de ver. É impressionante. A história dele como um todo é impressionante. Eu não estava lá na hora, mas um dos estudantes de Medicina o estava filmando por algum outro motivo, ele estava de bom humor, e no meio da conversa surge uma pergunta sobre os sonhos que ele tem; ele faz uma piadinha de cunho sexual sobre um sonho e de repente ele desaba diante da câmera. Mas continue.
Você fala de como a literatura às vezes descreve a realidade melhor que a ciência ou os cientistas. E um tema comum na literatura é o da culpa. Pense em Crime e castigo, ou nas Fúrias da mitologia grega que vêm atormentar as pessoas que agiram mal. Depois de ver o que aconteceu com Eddie e Dwayne, você diria que pode existir algo como a consciência, que vem não para punir, mas para dar às pessoas uma chance final de arrependimento, de consertar as coisas?
Com toda a certeza! Acho que existe, sim, algum tipo de acerto de contas. É como no caso da história da mulher que nunca chegou a experimentar o amor [contada em Death is but a dream]. As pessoas têm suas feridas, mas também há a chance de expiação, ainda que não naquele sentido religioso de um pecador que tem de arcar com as consequências dos seus atos. Não há como escapar do passado, e foi isso que aconteceu com Eddie e Dwayne. No filme de Dwayne, que você precisa mesmo ver, ele tem uma atadura enorme no pescoço. Ele foi para a cadeia duas vezes, passou mais tempo dentro da prisão que fora. Foi preso por homicídio – ainda que em ambos os casos tenha sido por legítima defesa, enquanto ele vivia nas ruas, o fato é que ele matou duas pessoas com as próprias mãos. Então, as suas feridas somatizaram. Ele sonha que está sendo esfaqueado no mesmo lugar do seu tumor. Está tudo filmado: ele está desperto e dizendo “eles não entendem, não sou uma pessoa má, eu estava sob o efeito de drogas, e isso e aquilo”. A melhor parte da história é que ambos, ainda que por meios diferentes dos que nos acostumamos a ver com outros pacientes, partiram em paz. Então, no fim da vida deles, o que houve com os sonhos ruins não foi uma punição, mas uma expiação mesmo, uma chance de deixar para trás os seus erros.
Parece que, no fim, cada um recebe exatamente aquilo de que precisa.
Exatamente, e faz muito sentido. As vidas são únicas e as mortes também, mas o tema é comum a todos. Para mim, as histórias mais tocantes são as do veterano da Segunda Guerra Mundial, que lutou com o trauma por 67 anos, e no fim teve o que precisava; do homem que havia perdido um braço; do ex-policial Eddie; da mulher que havia sofrido nas instituições em que viveu internada e ouviu que ela era amada. É sempre assim. As crianças percebem que não estarão sozinhas, que vão ficar bem, todas as histórias se encaminham para esse tipo de fim.
“As pessoas têm suas feridas, mas também há a chance de expiação, ainda que não naquele sentido religioso de um pecador que tem de arcar com as consequências dos seus atos. Não há como escapar do passado.”
Christopher Kerr
E igualmente interessante é o fato de que as pessoas não recebem aquilo de que não precisam. Se os pacientes tiveram uma mãe que não as amava incondicionalmente, ela não aparecia nos sonhos – como no caso de Beverly, que tinha a mãe alemã, cruel, e o pai carteiro, que a encontrava no fim do dia para fazerem juntos o fim do percurso diário de entregas dele; o pai aparecia nos sonhos, a mãe não. Fiquei surpreso ao ver quantas mães estavam ausentes dos sonhos; eu pensava que, especialmente no caso dos pacientes mais idosos, de uma época em que as mães ficavam mais em casa, seriam elas as que mais cuidavam, que mais expressavam seu amor, e por isso estariam mais presentes nas visões, mas não era assim. O que vimos foi um grande número de pais com um papel mais proeminente. Um dos temas mais frequentes que apareciam em nosso estudo dos sonhos das pessoas era o de que alguém estava esperando por elas, e esse alguém, com muita frequência, era do sexo masculino. Eu jamais teria imaginado isso.
Você pode ser pai, mãe, irmão, esposo, filho, e isso não significa automaticamente que você estará nos sonhos de fim da vida de alguém caso não o tenha amado de verdade. Esse é um dos principais temas que identificamos. Vimos pessoas que, por exemplo, tinham sete irmãos, mas eram próximas de apenas dois. Esses eram os que apareciam nos sonhos, e os outros ficavam de fora. É fascinante.
Vamos reescrever a canção, então? No fim, o amor que você leva é maior que o amor que você dá?
(risos) É isso mesmo. É sobre como você foi amado, não sobre como você deveria ter sido amado.
Anote na agenda: prêmio Nobel em Curitiba
O Instituto Ciência e Fé da PUCPR traz a Curitiba, na noite de 14 de setembro, o ganhador do Prêmio Nobel de Física de 2006, o astrofísico e cosmólogo norte-americano John Mather. O trabalho que lhe deu o prêmio ajudou a consolidar o modelo do Big Bang, e é justamente sobre isso que ele vem falar. Mather trabalha na Nasa, foi um dos principais cientistas envolvidos no projeto do novo telescópio James Webb e o tema de sua palestra será “O Big Bang e o mistério da vida”. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas aqui – e aproveite o embalo para se inscrever também no congresso da Sociedade Brasileira de Cientistas Católicos, que ocorrerá também na PUCPR, mas em outubro. O prazo para envio de resumos ainda está aberto e termina no começo de agosto.