A astrônoma norte-americana Jennifer Wiseman ainda estava na faculdade de Física, em 1987, quando descobriu um cometa. Era apenas o começo para a jovem que havia crescido em um ambiente rural no Arkansas, coberto pelo céu estrelado do interior que já não se vê mais nas cidades. Sua carreira a levou a uma série de projetos importantes nos Estados Unidos e a trabalhar no Congresso norte-americano como assessora para temas científicos, mas a fé cristã que ela herdou da família e jamais abandonou a puxou para um novo caminho: estimular o diálogo entre ciência e religião dentro da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS, em inglês), a maior entidade do gênero no mundo, com 120 mil membros. Desde 2010, Wiseman dirige o Diálogo sobre Ciência, Ética e Religião (DoSER, em inglês), e contou ao Tubo de Ensaio o que ela aprendeu e ensinou em quase uma década de trabalho neste campo. Quando conversou com o blog, em novembro do ano passado, durante a conferência da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, a União Astronômica Internacional havia acabado de renomear a Lei de Hubble, que descreve a expansão do universo, para Lei de Hubble-Lemaître, para homenagear Georges Lemaître, o padre-cientista belga que havia sido o pioneiro do Big Bang. “Fiquei feliz com a decisão, porque ela dá o devido reconhecimento a dois cientistas que nos ajudaram a entender que o universo está se expandindo. Não votei porque não sou membro da IAU, mas gostei do resultado”, afirmou.
Em 2009, você escreveu: “minha experiência é a de que não existe muita hostilidade explícita contra a fé, ou em particular a fé cristã, no campo da astronomia. Acho que é assim porque não existe tanto conflito teológico entre a ideia cristã de um universo ordenado, que teve um início, e o conhecimento científico que temos hoje sobre o universo”. De lá para cá, especialmente no campo da cosmologia, temos visto pessoas como Stephen Hawking e Lawrence Krauss afirmando que o universo pode ser criado a partir do nada, sem a necessidade de um criador. O conflito está aparecendo?
Creio que não. Ainda existe um senso muito forte entre nós, cientistas, de que o universo é ordenado e pode ser entendido pelas leis básicas da física. São elas que nos permitem especular sobre a possibilidade de um multiverso, porque hoje entendemos a teoria quântica. Tudo isso é possível porque sabemos que o universo é compreensível por meio de princípios básicos da física e da matemática. Continuo acreditando que os cientistas gostam da ideia de buscar a verdade, e à medida que formos descobrindo mais, até mesmo se realmente existe um multiverso, ele continuará sendo algo sujeito ao estudo científico. O mesmo tipo de processo mental usado por muitos cientistas do passado e do presente é o que as pessoas de fé também usam. A compatibilidade [entre ciência e fé] segue firme e forte.
Quais campos da ciência, então, estariam mais sujeitos a um conflito com a fé?
Muito do que aparece hoje como conflito, ou que é assim descrito, está no campo da antropologia e das ciências sociais. Ali, sim, existe uma sensação de que uma visão de mundo baseada em convicções religiosas pode se chocar com nosso entendimento da evolução humana. Nas ciências naturais, a maioria dos cientistas sabemos que nosso trabalho é maravilhoso, mas limitado a certos tipos de perguntas – por exemplo, sobre como a matéria e a energia no universo funcionam, de acordo com certos princípios fundamentais. O método científico não responde as grandes questões filosóficas sobre a vida.
Estamos vendo um aumento nas objeções à ciência, desde o criacionismo de Terra jovem, terraplanistas, movimento antivacinas, críticas aos dados sobre mudanças climáticas. Isso é realmente algo que está ganhando dimensões preocupantes ou se trata apenas de um grupo minoritário que está conseguindo fazer muito barulho?
Eu não sei se o sentimento anticientífico está realmente em alta, ou se as ferramentas de comunicação se tornaram tão abertas e livres que esse sentimento, ainda que limitado, está sendo mais ouvido. O que eu sei é que ainda existe muito apoio à ciência, em todo o mundo. Uma coisa que os cientistas podem fazer é ajudar o público a entender como chegamos a essas e aquelas conclusões. Como sabemos a história da Terra e do universo? Como sabemos que o clima está mudando? Tudo isso nós podemos medir, e então explicar às pessoas como chegamos a tais resultados. Isso tem de ser feito de uma forma que aqueles que não são cientistas possam entender o que fazemos e chegar às mesmas conclusões, nesses e em outros temas.
E quando essas objeções têm algum fundo religioso, o que fazer?
Os fiéis estão melhor servidos quando as pessoas que eles procuram para se aconselhar – ou seja, os líderes religiosos – também têm alguma familiaridade com a ciência, conhecem a forma como abordamos os temas científicos, e sabem relacionar esse conhecimento com os ensinamentos das Escrituras, com as várias perguntas que as tradições e livros sagrados levantam. Se eles tiverem esse preparo, podem mostrar às pessoas como é que tudo se encaixa. Por exemplo, uma compreensão científica da mudança climática, e da participação humana no processo, pode ajudar os líderes a estimular suas comunidades na busca de meios de preservar o meio ambiente, além de ajudar e servir as pessoas que são afetadas por eventos climáticos extremos. Os conhecimentos precisam andar de mãos dadas. Boa formação científica e uma compreensão adequada da fé se complementam direitinho.
A comunidade científica nos Estados Unidos está conseguindo um bom relacionamento com as comunidades religiosas?
Os cientistas estão percebendo que a melhor maneira de fazer as pessoas apreciarem a ciência é conhecê-las melhor e ajudá-las a perceber que os cientistas estão do seu lado, querem usar a ciência para fazer o bem. Dentro da Associação Americana para o Avanço da Ciência, que é a maior sociedade científica do mundo, temos este programa chamado Diálogo sobre Ciência, Ética e Religião, que ajuda os cientistas a ter uma boa interação com o público geral, especialmente as pessoas religiosas ou aqueles que têm um interesse de ordem ética sobre o uso da ciência e da tecnologia. Ajudamos os cientistas, independentemente de sua fé (ou de não terem fé nenhuma), a conhecer e se relacionar com várias comunidades religiosas. E o sucesso é tremendo. Temos formado cientistas para atuarem nos seminários onde os futuros líderes religiosos, das mais variadas tradições, são formados. Os cientistas gostam, porque estão aprendendo muito sobre esses grupos e sobre as preocupações e interesses que eles têm em relação à ciência. E as comunidades religiosas também têm aprovado, porque aqueles que gostam de ciência ficam maravilhados ao saber mais sobre os avanços que temos feito em todos os campos, incluindo astronomia, neurociência, genética, biologia. Há os que têm curiosidade em aprender mais, há os que apresentam dilemas éticos, mas todos gostam de conversar com os cientistas de igual para igual. Qualquer organização científica pode levar adiante uma iniciativa como essa, de um diálogo produtivo entre cientistas e religiosos.
Em várias ocasiões você fala sobre o impacto que a série Cosmos, de Carl Sagan, teve na sua vida. A série ganhou uma nova versão, apresentada por Neil deGrasse Tyson. Nenhum deles tem fé religiosa. Isso lhe incomoda? Deveríamos ter cristãos atuando como divulgadores da ciência, com grande presença na mídia?
Décadas atrás, foi justamente a série Cosmos que despertou meu interesse na astronomia. Eu sou imensamente grata a Sagan e a esses divulgadores da ciência que fazem um ótimo trabalho explicando e animando as pessoas sobre o que estamos descobrindo no universo. Mas sim, vejo um desafio para as comunidades religiosas: encorajar seus membros cientistas a falar sobre ciência, e sobre como eles enxergam as descobertas científicas com as lentes da sua crença religiosa. Eles ajudarão os demais a ver como essas descobertas se relacionam com o principal compromisso de suas vidas, que é a fé. Será extraordinário se as comunidades religiosas animarem cientistas de fé a ganhar confiança para falar sobre ciência, sobre o quão animador é seu trabalho, sobre o que a ciência e a tecnologia podem fazer por pessoas que vivem guiadas pela fé. Esses divulgadores podem não ganhar reconhecimento internacional como um Sagan ou um Tyson, mas farão a diferença para muita gente.
A contemplação do universo e o seu estudo podem levar a Deus?
A ciência, sozinha, não pode ser usada para provar, nem para negar Deus. O método científico foi criado para responder a questões bem específicas, sobre as forças físicas do universo e coisas semelhantes. Mas sim, eu acho que, quando vemos como o universo tem aspectos extraordinários, ele nos proporciona uma sensação enorme de humildade, nos deixa maravilhados, fascinados, e ainda mais curiosos. Quando se tem a fé em um Deus que é responsável pelo universo, esses sentimentos vêm para somar. Então, se por um lado a ciência não prova nada, por outro, sendo uma pessoa de fé, a minha crença é enriquecida pelo estudo das obras da natureza, aprofundando meu entendimento sobre as formas como Deus trabalha.
A ciência, por exemplo, nos mostra que o universo se desenvolveu ao longo de bilhões de anos, tornando-se propício ao surgimento da vida, com várias gerações de estrelas nascendo e morrendo, deixando os elementos químicos mais pesados de que necessitamos para existirem os planetas e a vida. Isso não prova que Deus existe, mas, para um cristão, isso leva a apreciar ainda mais o que vemos como o “método criativo” de Deus, que usa processos físicos ao longo de um tempo incomensurável para desenvolver um universo sob medida para a vida – vida que é capaz de ter essa conversa que estamos tendo agora. Isso torna mais profunda a maneira como vejo Deus, e é isso que qualquer ciência pode fazer quando vista pelos olhos da fé.
Um cientista cristão e um cientista ateu estudam as mesmas coisas, com os mesmos instrumentos, no mesmo laboratório. O que há de especial em um cientista cristão?
Uma coisa que eu amo na ciência é o fato de pessoas de diferentes culturas, perspectivas ou religiões poderem olhar os mesmos dados, fazer as mesmas perguntas, usar as mesmas técnicas de medição e obter os mesmos resultados em uma pesquisa. Isso é uma vantagem da ciência. Se eu pego um microscópio ou um telescópio, não importa se eu sou cristã ou não, ou se meu colega é religioso ou não: devemos chegar às mesmas conclusões científicas. Mas elas não são tudo. Há as interpretações filosóficas dessas conclusões. E nessa hora mesmo os cientistas que concordam nos números podem ter visões radicalmente diferentes.
Quer um exemplo? A neurociência pergunta: eu sou totalmente definido pelo meu cérebro? Alguns dirão que sim, que, se entendermos toda a química do cérebro, ali está tudo o que somos: reações químicas nos neurônios são tudo o que nos define. Outros têm uma perspectiva filosófica diferente e dizem que não, que o cérebro é parte do corpo e que é fundamental entender como ele funciona, mas que ele não nos define totalmente, pois temos uma alma, uma identidade que vai além do cérebro. Portanto, pessoas que estudam o cérebro e chegam às mesmas conclusões dentro da neurociência podem ter abordagens filosóficas diferentes para essas conclusões.
Outra questão: o universo como um todo tem um propósito? Cada especialista terá uma opinião diferente porque essa não é uma pergunta estritamente científica, mas filosófica – para alguns, até mesmo teológica. Então, cientistas que têm a mesma compreensão sobre a ciência do universo podem defender visões divergentes sobre se o universo foi criado para, mais cedo ou mais tarde, abrigar vida, ou se existe um propósito abrangente para o universo. E é enriquecedor discutir com pessoas que têm pontos de vista filosóficos e religiosos diferentes do meu. Ouvir boas ideias de outras pessoas acrescenta, nos faz humildes e melhora as nossas próprias ideias.
Carl Sagan diz que somos “poeira das estrelas”, e o Salmo 8 diz que somos quase iguais aos anjos, corados de honra e glória. Como é ser as duas coisas ao mesmo tempo?
Aí é que está: não acho que ser “poeira” nos diminua. A Bíblia também diz que somos feitos do “pó da terra”; não é incrível? Claro que o autor sagrado não sabia nada da astrofísica atual, mas é interessante que nossos corpos realmente contenham átomos que foram forjados dentro das estrelas. A poeira mesma também é feita de elementos pesados que se originaram desses astros. Então, nossa ligação com o universo é muito real, é física. Isso é fascinante. Olhar dessa forma nos ensina a enxergar melhor a perspectiva bíblica, de que nosso valor não vem daquilo de que nosso corpo é feito, mas do fato de Deus ter nos escolhido, nos valorizado, nos dado a capacidade de nos relacionarmos com Ele. Ouvimos que somos feitos “à imagem e semelhança” de Deus não porque Deus se pareça com um humano, mas porque temos essa consciência sobre nós mesmos, sobre o bem e o mal e, assim espero, sobre como Deus nos ama. Nós, cristãos, cremos que Deus nos deu esse presente, e é daí que vem o nosso valor.
Pequeno merchan
Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também fui colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio entre 2010 e 2017. A editora vinculada à revista publicou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.