Marcelo Gleiser defende o “humanocentrismo”, a consciência sobre o lugar especial que o ser humano tem no universo.| Foto: Edjane Madza/PUCPR

Três anos depois de vir à Pontifícia Universidade Católica do Paraná para uma conversa com o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, o astrofísico Marcelo Gleiser voltou a Curitiba para receber um doutorado honoris causa e dar a palestra magna “Por uma nova espiritualidade” na mesma PUCPR. Gleiser está se consolidando como um dos principais nomes na busca de um diálogo amistoso entre ciência, filosofia e religião, e neste ano se tornou o primeiro latino-americano a receber o Prêmio Templeton, entregue anualmente a pessoas que oferecem “uma contribuição excepcional para afirmar a dimensão espiritual da vida, seja por insights, descoberta ou trabalhos práticos”. O cientista, professor da Universidade Dartmouth, nos Estados Unidos, se define como agnóstico, mas rejeita uma visão que atribui à ciência o monopólio do conhecimento e defende a importância do maravilhamento e da contemplação da grandeza do universo. Três anos depois de entrevistá-lo por ocasião do Átrio dos Gentios, voltamos a conversar sobre os limites da ciência e sua busca pela “nova espiritualidade”.

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O que é essa “nova espiritualidade” que você propõe?

“Espiritualidade” é uma palavra geralmente ligada a religiões. Falamos do espírito, da alma, da reencarnação, mas a etimologia das palavras “espiritualidade” e “espírito” vem de “aspirar”, ou “inspirar”, tem a ver com estar se inserindo no mundo. A ideia, então, é resgatar a palavra “espiritualidade” sem desrespeitar seu uso nas religiões organizadas, mas mostrando que existe uma outra dimensão dessa palavra: a dimensão que inclui nossa relação com a natureza. Para mim, é algo meio Santa Teresa de Ávila. Nós nos esquecemos de que viemos da natureza. E por que nos esquecemos? Se olharmos para as tradições culturais dos povos nativos em todo o planeta, eles viam a terra como algo sagrado. A terra, as árvores, o céu. Mas essa noção de sacralização da natureza foi esquecida e substituída pela natureza como objeto de exploração material, tanto pelo racionalismo na ciência quanto pelo oportunismo econômico. O que tento fazer é sacudir um pouco as pessoas, acordando-as para essa nova dimensão que resgata a nossa relação com o planeta e com todas as formas de vida. É uma forma de combater os fundamentalismos, os extremismos, os tribalismos, que para mim são o grande mal da humanidade. É uma forma de tentar unificar sem perder as diferenças e a diversidade, que existe, e são importantíssimas, mas mostrando que, no fim das contas, somos todos uma espécie só.

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Essa “nova espiritualidade” ainda tem lugar para a religião formal, institucionalizada, para a fé no sobrenatural?

Sempre tem lugar, contanto que exista uma um respeito mútuo entre o papel da religião e o papel do conhecimento acadêmico científico, humanista, no sentido de que existem esferas de atuação que, embora sejam complementares, não devem ser violadas. O ser humano precisa de ambas as esferas. Quem diz que é ateu, para mim, continua tendo fé, não é mesmo? Faz parte da natureza humana crer em alguma coisa – mesmo que seja crer na “não fé”. Então, desde que sejam respeitadas essas fronteiras de atuação, eu não vejo por que não ter lugar para a religião.

"Em termos práticos, a Terra é um planeta muito raro e nós somos uma espécie animal muito rara"

Um texto recente seu fala do “humanocentrismo”. Às vezes ouvimos, como elogio ou como crítica, que Copérnico tirou o homem do seu lugar especial, e depois Darwin fez o mesmo. Qual é, afinal, o nosso lugar?

Então, estou aqui, humildemente, tentando colocar o homem de volta no centro, é um projeto no qual venho trabalhando e será tema do meu novo livro. Mas é um centro metafórico. Falo de constatar que, quando olhamos para outros planetas, dentro ou fora do sistema solar, encontramos uma diversidade gigantesca de mundos, alguns dos quais com propriedades semelhantes às da Terra, mas, ainda assim, o que a Terra tem em termos de conjunto é uma série de características muito difíceis de serem replicadas em outros planetas. Claro, existem trilhões de outros planetas só em nossa galáxia, não é possível que haja outros planetas como o nosso? Sim, é possível, mas muito pouco provável. Talvez haja alguns parecidos, talvez alguns com vida, ou até mesmo com vida inteligente. Mas, em termos práticos, a Terra é um planeta muito raro e nós somos uma espécie animal muito rara, porque somos os únicos seres que conhecemos. Talvez haja outros no Planeta X, Y ou Z, mas até agora somos os únicos seres conhecidos que têm a capacidade de autoconsciência e de percepção da passagem da morte. Isso nos coloca em um patamar completamente diferente das trutas, ou do elefante – aparentemente os elefantes também entendem a morte, mas eles não constroem radiotelescópios, nem escrevem poesias. Isso nos remete de volta ao centro. Nós somos como o universo pensa sobre si mesmo. Essa é a reflexão do humanocentrismo.

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Comentando seu encontro com o cardeal Gianfranco Ravasi, em 2016, na PUCPR, você escreveu que não teria aceitado conversar com ele se o cardeal fosse um literalista. Dois anos antes, nos Estados Unidos, houve um debate famoso entre Bill Nye, o “Science Guy”, e o criacionista Ken Ham, e Nye recebeu críticas por estar dando palanque a criacionistas. Com quem é possível e com quem não é possível dialogar?

Não acompanhei esse debate, mas conheço Bill Nye muito bem. Eu acho possível debater com qualquer pessoa que entre na conversa suficientemente aberto para tentar entender, ou ao menos respeitar, a posição do outro. O que falta nesses diálogos é uma abertura intelectual maior para nos colocarmos no lugar do interlocutor. O segredo do debate é este: poder entender, ou pelo menos tentar ensaiar na sua cabeça, como é que a pessoa do outro lado chega àquelas posições diferentes, como essa pessoa vê o mundo e por que ela o vê assim. Quem não for capaz de fazer isso nunca vai conseguir debater, vai apenas falar consigo mesmo. Desde que a pessoa tenha essa abertura intelectual e emocional, acho muito mais importante conversar que não conversar, pois o contrário é se fechar à oportunidade de um diálogo. E, mais do que qualquer outra coisa, precisamos conversar.

O problema do criacionismo, em particular, é que a ciência do criacionismo está errada e ele invade aquelas esferas de saber de que tínhamos falado, pois tenta usar uma ciência errada para demonstrar algo que a ciência não pode provar, que é a existência de Deus. São dois erros primários. Primeiro, a própria ciência dele está errada; segundo, eles acham que a ciência tem alguma coisa a dizer sobre a natureza da divindade. Isso não faz o menor sentido. A ciência não tem nenhum compromisso, não tem nenhum desejo, não tem nenhum projeto de provar ou negar a existência de Deus. Esses são projetos individuais, de pessoas que podem ou não ser cientistas. Mas, no caso do cientista, aquele que acha possível usar a ciência para provar a inexistência de Deus não conhece nada sobre filosofia, nem sobre teologia, e está errado. Ele também invade a outra esfera. Esse tipo de extremismo é o extremismo das pessoas que não vão ser capazes de sentar para uma conversa.

Alguma narrativa científica pode chegar a explicar a origem de tudo, por que existe algo e não o nada?

A ciência não tem nada a dizer sobre a “primeira causa”. A ciência pode construir uma série de mecanismos e modelos que descrevam propriedades do universo quase no seu iniciozinho – é o que eu faço, aliás. Mas não vejo como avançar a ideia de que seja possível usar um modelo científico para descrever a origem de tudo. Não com a ciência que temos hoje. É algo, diria eu, incognoscível. Então há espaço para a religião aqui? Claro que sim, mas também há espaço para simplesmente afirmar que não sabemos.

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O cientificismo afirma que não existe conhecimento válido fora da ciência, e o reducionismo científico defende que tudo pode ser reduzido a fenômenos cientificamente explicáveis, afirmando, por exemplo, que não passamos de reações químicas e por isso não existem coisas como o livre arbítrio. Essas ideias ainda estão fortes? Elas têm futuro?

O cientificismo continua, sim, forte, porque vários cientistas seguem pensando de forma triunfalista. A diferença é que, agora, trabalhos como o meu e de vários outros cientistas também estão ganhando terreno. O Prêmio Templeton é uma demonstração disso, e há vários cientistas, como Adam Frank, Lee Smolin e Carlo Rovelli – todos físicos, por coincidência –, que também estão na contracorrente. Estamos apenas começando a ser ouvidos, e isso para mim é muito alentador.

Quanto ao reducionismo, que leva a entender o livre arbítrio, por exemplo de uma forma mecânica, ele tem uma falha fundamental. Os reducionistas afirmam que tudo pode ser explicado por meio da ciência, mas não pode. Não pode mesmo. É óbvio. E quem acha isso possível tem um problema porque, como eu afirmei no livro A ilha do conhecimento, a ciência tem um limite básico de funcionamento. A ciência é maravilhosa, eu faço isso há 30 anos, mas ela não tem como explicar tudo – ela não tem como explicar a si mesma. A ciência precisa de uma estrutura conceitual para poder funcionar. O que é espaço? O que é tempo? O que é energia? O que é matéria? Você precisa entender essas coisas para poder começar a fazer ciência, e então a questão passa a ser outra: de onde vem isso tudo, o que vem antes da ciência. E isso a ciência não sabe explicar. É como perguntar quem era você antes de você nascer. Não tem como.