Suponho que as pessoas esperem, de um blog sobre ciência e religião, o “tradicional post de Natal sobre a Estrela de Belém”, e o “tradicional post de Páscoa sobre o Santo Sudário”. Mas acho que venho desrespeitando as regras; que eu me lembre, só fui falar da Estrela de Belém no meu terceiro Natal como blogueiro, por exemplo. E ia falar hoje também, mas alguns cientistas italianos resolveram subverter a pauta natalina e publicaram um estudo sobre… o Sudário de Turim!
O Telegraph londrino publicou uma reportagem com um título meio sensacionalista (quem já viu na internet aquelas “10 capas honestas de revistas” lembra da Superinteressante com “Manchete alarmista” e “mas lendo a matéria você percebe que não era tudo isso”): “Estudo italiano alega que o Sudário era a autêntica mortalha de Cristo”. Aí você desce para o que, no jargão jornalístico, chamamos de “gravata” e ela diz (itálicos meus) que “um novo estudo (…) sugere que (…) o Sudário de Turim não é uma falsificação medieval, mas poderia ser a autêntica mortalha de Cristo”. E você vai ler o texto e perceber que nem isso os cientistas dizem.
A conclusão dos italianos é de que a imagem do Sudário não poderia ter sido feita com a tecnologia disponível na Idade Média. Os especialistas da Agência Nacional para Novas Tecnologias, Energia e Desenvolvimento Sustentável dizem que, para conseguir a nuance, textura e profundidade exatas da imagem no pano, seria necessário um laser ultravioleta, algo que obviamente os medievais não conheciam.
Os cientistas param aí, e nem poderiam ir além; como dizem os escritores Bruno Barberis e Massimo Bocaletti em Il caso Sindone non è chiuso, existem três níveis de “autenticidade” do Sudário: no primeiro nível, admite-se que a imagem foi realmente produzida por um cadáver humano e por meios naturais, ou seja, nada de artista, pintura, essas coisas. No segundo nível, admite-se que o lençol seja efetivamente uma mortalha do século I que envolveu um cadáver, mas não necessariamente seja “Aquela Mortalha” que envolveu “Aquele Cadáver”. No terceiro nível de autenticidade, admite-se que o Sudário é realmente a mortalha de que falam os Evangelhos e que envolveu o corpo de Cristo após a morte na cruz. A ciência não tem como atestar o terceiro nível de autenticidade; no máximo, ela vai até o segundo nível.
A reportagem do Telegraph ainda recupera as conclusões do Shroud of Turin Research Project (Sturp), que reuniu dezenas de pesquisadores de várias áreas. Sua conclusão foi a de que a imagem não foi feita com pigmentos, nem que tenha sido obra de algum artista; na verdade, a imagem não tinha explicação científica. E, 30 anos depois do encerramento das pesquisas do Sturp, continua não tendo.
Ah, mas tem o carbono 14. Esse é o eixo central do comentário de Tom Chivers, também no Telegraph. O jornalista faz várias observações acertadas sobre a questão, como a que inicia seu artigo: se o Sudário é falso, não significa que as histórias relativas à morte e ressurreição de Cristo também sejam; se é autêntico (no segundo nível de autenticidade de que falamos acima), ele não é a prova laboratorial da existência de Cristo. Ou a observação do parágrafo final, de que nós, que acreditamos, não precisamos que o Sudário seja verdadeiro para reforçar nossa fé. Mas o artigo também tem algumas bobagens, como a citação de Calvino, que percebeu a ausência de referências ao Sudário nos Evangelhos. Para começar, a imagem no pano não é tão visível assim; você precisa estendê-lo e prestar muita atenção para encontrar o desenho do corpo (a imagem mais nítida é um negativo, que nem os apóstolos, nem Calvino, tiveram a chance de ver). Além disso, se o meu líder tivesse sido morto e sepultado, e eu descobrisse que dias depois só encontraram os panos no túmulo, acho que minha última preocupação seria com os panos; eu ia querer saber onde foi parar a pessoa que estava dentro deles.
Chivers afirma que a “datação por carbono repetidamente atestou a origem medieval do Sudário”. Que eu saiba, só foi feito um teste em três lugares diferentes, então não sei de onde veio esse “repetidamente”. Um pesquisador do laboratório de Oxford que fez os testes nos anos 80 defende os resultados da datação e explica por que as hipóteses que desqualificam o teste estariam erradas. Reparem que, ao comentar a possibilidade de a amostra ser de um dos vários remendos feitos no Sudário, Christopher Ramsey afirma que “a maioria de nós concorda que isso não é plausível”. Então devo concluir que há quem creia nessa possibilidade? Algo que “não é plausível” não é necessariamente impossível.
Nessa nossa época de neutrinos apressados, soa bem curiosa essa atitude de “Duas palavras pra você: carbono 14. Caso encerrado” que os céticos adotam. Vejamos: um grupo de cientistas faz um teste que dá um resultado, digamos, inesperado. Surgem hipóteses de distorções que poderiam ter levado ao tal resultado. Em um caso, os testes são refeitos, e provavelmente haverá muitos outros mais, para saber se aquele resultado inicial é fruto da realidade ou das distorções. Em outro caso, ninguém quer nem saber, é isso aí, os testes já foram feitos, tá tudo certo, acabou, vão pra casa, não tem mais nada para ver aqui.
Precisamos de um novo Sturp? É algo que eu gostaria de ver. Já o presidente do Centro Sindonológico do Brasil, José Humberto Resende, me disse uma vez que não via com bons olhos novas rodadas de testes. “Todas as vezes que o Sudário foi submetido a exames, alguém, por ato criminoso, tentou destruí-lo, como aconteceu no incêndio de 1997. Por isso acho que só se deveria submetê-lo a novo exame quando tivéssemos um teste 100% infalível; do contrário, é melhor esperar a vontade de Deus”, argumenta. E não lembro quem comentou comigo que isso criaria uma espiral infinita: daqui a 20, 30 anos teremos novas tecnologias, e vão querer refazer os exames, e vão se passar outros 30 anos, mais testes, e assim sucessivamente. Entendo as duas posições, mas, exceto pelos eventuais problemas que isso possa causar ao pano, sinceramente não vejo tanto motivo para apreensão. A epígrafe do livro de Barberis e Boccaletti é justamente “o Sudário não teme o exame; teme apenas não ser examinado”.
Recesso de Natal
Amanhã começo um pequeno recesso de Natal e retorno à redação apenas no dia 30. Quero desejar a todos um santo Natal, cheio de paz aos leitores, comentaristas e suas famílias. Se você preferir celebrar o tal do Newtonmas, pelo menos lembre-se de que Isaac Newton era um homem profundamente religioso. E segue a mensagem de Deus para os leitores (já publiquei essa tirinha no blog, mas é que gosto muito dela):
O post sobre a Estrela de Belém fica para depois, afinal temos até 6 de janeiro para comentar o assunto!
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