Nos círculos protestantes, as últimas semanas foram marcadas por uma discussão sobre a existência histórica de um primeiro casal, Adão e Eva, como descrito na Bíblia. Na segunda-feira, Albert Mohler Jr., presidente do Southern Baptist Theological Seminary e uma das vozes mais respeitadas entre os evangélicos norte-americanos (lembro que “evangélico” lá é diferente do “evangélico” daqui), escreveu um artigo comentando uma reportagem de rádio que havia ido ao ar algumas semanas antes. A repórter Barbara Hagerty conversou com teólogos e cientistas protestantes de diversas correntes sobre a questão do primeiro casal. Um professor de Biologia afirmou que, com a evidência genética atual, é muito improvável que toda a humanidade seja descendente de um único casal. Mas um professor de Teologia foi ainda mais longe, dizendo que não apenas não havia Adão e Eva, nem maçã, nem serpente, mas também não houve “queda que tenha derrubado o homem de um estado de inocência”.
Mohler rejeita esse raciocínio; já tendo lido algumas coisas dele, inclusive um pequeno livreto em que ele refuta muitas das alegações do Novo Ateísmo, me parece que Mohler não aceita nem mesmo a evolução das espécies. Posso estar enganado, mas eu o coloco no extremo oposto àquele em que está John Schneider, o professor que negou a Queda. Obviamente discordo da rejeição de Mohler à evolução, mas entendo perfeitamente por que ele se mostra alarmado com posições como a de Schneider: sem o Pecado Original, alega Mohler, a redenção trazida por Cristo perde completamente o sentido. Imagino que qualquer cristão (católico, protestante ou ortodoxo, não importa) que conheça um pouco a sua fé pode entender isso.
No dia seguinte à reportagem de rádio, o pessoal da Fundação BioLogos acrescentou um novo elemento à discussão. Darrel Falk e Kathryn Applegate afirmam que é um pouco simplista dizer que se aceitamos a evidência científica, precisamos recusar a historicidade de Adão e Eva. Existe uma grande área cinza; embora a ciência tenha os elementos para analisar a evidência genética (inclusive se fala de uma “Eva mitocondrial” e de um “Adão cromossômico”, mas parece que eles viveram em épocas diferentes), ela não diz nada sobre um eventual “relacionamento especial” entre Deus e dois Homo sapiens e o que pode ter acontecido depois; Falk e Kathryn alegam que isso foi ignorado na reportagem, e que vários teólogos e cientistas cristãos vêm trabalhando nesse assunto, oferecendo hipóteses como a de Denis Alexander, que comentei faz algum tempo.
Na terça-feira, dia seguinte à publicação do artigo de Mohler, John Martens se propôs a fazer um resumo de como a Igreja Católica vê essa questão, em um artigo no site da revista America, publicada pelos jesuítas norte-americanos. Primeiro, ele faz um resumo da controvérsia atual no meio protestante, e depois começa a citar documentos da Igreja e textos de João Paulo II que tratem da existência de um primeiro casal e da interpretação do Gênesis. Para encurtar a história, Martens afirma que os textos oficiais deixam um caminhão de ambiguidades; Martens não diz, mas para mim chega perto de dizer que cada um acredita no que quiser em relação a esse assunto (não surpreenderia, vindo dos jesuítas norte-americanos, como bem sabe qualquer um que tenha lido alguma entrevista do padre Thomas Reese, ex-diretor da America).
O problema do “cada um acredita no que quiser” é que a última definição magisterial da Igreja Católica sobre a existência de Adão e Eva está no ponto 37 da Humani Generis, de Pio XII (tratando-se de outra hipótese, isto é, a do poligenismo, os filhos da Igreja não gozam da mesma liberdade, pois os fiéis cristãos não podem abraçar a teoria de que depois de Adão tenha havido na terra verdadeiros homens não procedentes do mesmo protoparente por geração natural, ou, ainda, que Adão signifique o conjunto dos primeiros pais). Eu ia lendo o texto de Martens e reparei a malandragem: ele cita os pontos 36 e 38 da encíclica, mas não o 37, justamente o texto mais relevante para discutir o assunto pela ótica católica.
Quando um comentarista do texto lembrou da existência deste texto, Martens deu uma de Leão da Montanha. Propor que em um certo ponto do desenvolvimento evolutivo de nossos ancestrais um primeiro casal recebeu a alma diretamente de Deus não contradiz a Humani Generis, alega Martens. E ele está certo. Mas o problema central não está aí; o principal na controvérsia sobre Adão e Eva não tem nada a ver com decidir entre evolução ou criação direta. É verdade que há quem defenda a historicidade do primeiro casal dizendo que o homem é único, foi criado diretamente por Deus, não descende de outros primatas; se vocês voltarem à reportagem da NPR, verão que essa é a posição de Fazale Rana. Mas Pio XII, que já havia dado o OK à pesquisa sobre a evolução, vai defender o monogenismo na Humani Generis por outros motivos: não se vê claro de que modo tal afirmação [de que houve outros “primeiros pais”] pode harmonizar-se com o que as fontes da verdade revelada e os documentos do magistério da Igreja ensinam acerca do pecado original, que procede do pecado verdadeiramente cometido por um só Adão e que, transmitindo-se a todos os homens pela geração, é próprio de cada um deles. Ou seja, a preocupação do Papa é a mesma de Mohler, relativa à Queda.
Obviamente, para quem aceita a historicidade de Adão e Eva, ainda sobra um punhado de questões, algumas delas enumeradas no artigo de Falk e Kathryn, do tipo “com quem Caim se casou?” ou “quem são os outros de quem Caim diz ter medo?”. Seriam outros Homo sapiens “sem alma”? Em caso positivo, o pecado original seria transmitido se um humano “com alma” tivesse um filho com outro humano “sem alma”? Fico curioso para saber que respostas os protestantes que leem o blog dariam a essas questões. Do ponto de vista católico, confesso ignorar se há respostas para isso. Se houver, eu as desconheço e agradeço se alguém puder enviar referências.
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