Detalhe de retrato de Francis Galton, primo de Charles Darwin e grande promotor da eugenia.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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A Zygon, uma das principais (se não a principal) revistas acadêmicas sobre ciência e religião do mundo – e que você pode ler gratuitamente, ao contrário de muitas outras publicações acadêmicas –, publicou um editorial tremendamente provocativo na sua edição de junho. Assinado por John Slattery, diretor do Centro para Ética na Ciência, Tecnologia e Direito da Universidade Duquesne, e chamado “Reconsidering Eugenics in Science and Religion Scholarship: A Reflection and Invitation”, o texto afirma que o campo da pesquisa sobre ciência e fé precisa seguir o exemplo de outras instituições e deixar emergir a verdade sobre todo o apoio que teorias eugenistas receberam, principalmente na segunda metade do século 19 e primeira metade do século 20, inclusive de personalidades consideradas icônicas no diálogo entre ciência e religião.

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Aqui na Gazeta do Povo, o Flavio Gordon já escreveu algumas colunas revelando essa “história oculta” da eugenia, que, bem antes de encantar os nazistas, já havia conquistado o establishment acadêmico britânico e norte-americano – veja, por exemplo, “Eugenia: a religião dos intelectuais progressistas”, de 2023, e “O bebê e o monstro”, de 2024. Mas o esforço que Slattery quer dos pesquisadores sobre ciência e religião é um pouco diferente daquele feito por outras entidades, como a Sociedade Americana de Genética Humana, a University College London e as revistas Nature e Science, que ativamente ajudaram a promover a ideologia eugenista no passado. Slattery se refere a outro fenômeno: a “supressão da eugenia nas conversas sobre ciência e fé na segunda metade do século 20”. É como se o esqueleto ficasse eternamente guardado no armário.

O autor do editorial dá o exemplo do jesuíta Pierre Teilhard de Chardin, de quem já falamos brevemente aqui na coluna. Slattery pesquisou os escritos do padre, que muitos veem como um grande expoente do diálogo entre ciência e fé, e encontrou neles “um racismo paternalista, melhor observado em seus tratados antropológicos e sua discussão da evolução humana. Este racismo trata todos os humanos que não tenham ancestralidade na Europa Ocidental como intrinsecamente inferiores”. Complicado, não? Como não conheço praticamente nada da obra de Teilhard de Chardin, não tenho como confirmar a conclusão de Slattery sem ao menos ler sua pesquisa, mas sei que, sendo verdadeiro esse alegado racismo, isso não invalidaria aquilo que porventura haja de positivo da obra do padre jesuíta, já que não somos esse tipo de canceladores. A questão não é essa, e sim a “ricuperização” de algumas personagens, exaltando o que é bom e escondendo o que é ruim.

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Não foram poucos os que sequestraram a descrição de Darwin sobre como as coisas tinham sido (ou seja, como surgiu a variedade da vida na terra) para derivar daí uma ideologia sobre como as coisas deveriam ser (nas relações humanas)

Slattery sabe que não foi só o campo acadêmico de ciência e religião que se dedicou a varrer coisas para baixo do tapete: “A justa fúria do pós-guerra foi direcionada a pegar nazistas, julgá-los, e apagar qualquer menção à eugenia em políticas públicas e conversas privadas. A não ser que um eugenista estivesse diretamente ligado ao regime nazista, ele não sofria maiores consequências. Por causa disso, muito da eugenia norte-americana foi simplesmente renomeada, e vários eugenistas seguiram trabalhando sob outros pretextos”, afirma o editorialista. Mas o resultado respingou na nossa área de interesse: “A realidade da historiografia sobre ciência e religião é a de que tanta tinta correu para falar de evolução e teologia, tentar corrigir ou entender os criacionistas, que talvez tenhamos desenvolvido um ponto cego quando se trata de descobrir e corrigir nossos próprios erros do passado”.

Esse apagamento do eugenismo, alega Slattery, atrapalha inclusive o esforço de montar uma história abrangente dos questionamentos à Teoria da Evolução. O editorialista diz discordar dos criacionistas, mas afirma que “talvez esses pontos de vista [dos criacionistas] tenham sido reforçados pela fusão entre evolução, eugenia e fé, e talvez essas visões tenham sido ainda mais intensificadas pela negação do fato de que a eugenia era apoiada pelas mesmas pessoas que defendiam a evolução”. De fato, não foram poucos os que sequestraram a descrição de Darwin sobre como as coisas tinham sido (ou seja, como surgiu a variedade da vida na Terra) para derivar daí uma ideologia sobre como as coisas deveriam ser (nas relações humanas), pulando do descritivo para o prescritivo – o próprio primo de Darwin, Francis Galton, foi um desses. Se ao menos alguns criacionistas começaram a rejeitar a evolução por vê-la promovida pelos mesmos que defendiam a eugenia – e, ainda por cima, usando a evolução como argumento a favor da eugenia –, podemos mesmo culpar esses criacionistas? E podemos ignorar esse fato ao contar a história do criacionismo?

No editorial, Slattery anuncia a realização de um workshop presencial em 2025 e a publicação de uma edição especial da Zygon em 2026, dedicada apenas a esse tema. Entre as abordagens adotadas estarão o estudo do efeito da promoção da eugenia sobre o fundamentalismo e o criacionismo no século 20; a reconsideração de figuras históricas, eventos e discussões relevantes para o estudo da relação entre ciência e religião; e o efeito de questões raciais e do racismo no desenvolvimento do campo acadêmico de estudo sobre ciência e fé. Essa é uma conversa que não vou querer perder.

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