“O que você está vindo fazer no Reino Unido?”
“Vou passar uns dias em Londres, e depois vou a Oxford para um congresso.”
“Congresso de quê?”
“Sobre ciência e religião.”
“Você está vindo a negócios, então.”
“Não exatamente. Não sou palestrante, mas fui convidado pela universidade para assistir ao evento.”
“Muito bem! E sobre que religião é?”
“Nenhuma religião em específico. É sobre a relação entre ciência e religião.”
“E qual é a relação entre ciência e religião?”
“Há vários pontos de vista. Para uns, é de conflito; para outros, de independência total; para outros, de cooperação.”
“E qual é o seu ponto de vista?”
“Estou do lado da cooperação.”
“Então tá. Pode ir pegar suas malas.”
Esse foi o diálogo que tive com o oficial de imigração em Heathrow no dia 1.º de setembro. Ele já tinha carimbado o passaporte logo no começo, então imagino que a minha opinião sobre a relação entre ciência e fé não seria determinante para ter minha entrada no país aceita ou negada. Mesmo assim, achei que seria melhor não perguntar o que ele pensava…
Falei “congresso” ao policial para não ter de explicar as diferenças entre congresso e workshop. Mas o evento em Oxford não era um congresso como os da Cidade do México, em 2011, e do Rio, em 2012. Foi mesmo um workshop, com algumas dezenas de especialistas reunidos para debater as perspectivas da pesquisa em ciência e religião na América Latina. Tive o privilégio de ser um dos convidados, mesmo estando fora do mundo acadêmico; por isso sou muito grato a Ignacio Silva e ao padre Andrew Pinsent, codiretores do projeto Ciência e Religião na América Latina, da Universidade de Oxford, pela oportunidade. Ouvi muito mais do que falei, e pude entender bem quais são as maiores preocupações dos pesquisadores latino-americanos. Aliás, eles não eram os únicos por lá: havia espanhóis, italianos, britânicos e norte-americanos, incluindo representantes do Instituto Faraday (da Universidade de Cambridge), da Fundação BioLogos e da Fundação John Templeton. As três instituições tiveram tempo para explicar aos demais o que faziam e como podiam cooperar com projetos na América Latina.
O primeiro dia foi dedicado a um diagnóstico sobre a realidade atual. Parte desse diagnóstico já tinha sido levantada no relatório enviado aos participantes semanas antes do evento (e que, a pedido da organização, não coloquei no blog). Nele, falava-se quase que exclusivamente do cenário acadêmico: pesquisa sobre ciência e religião nas universidades, facilidades ou dificuldades para a pesquisa, existência ou falta de recursos, quais são os temas mais estudados… para não dizer que não havia nenhuma menção à opinião pública, o fim do relatório traz trechos selecionados das respostas dadas ao questionário respondido por pesquisadores, e um deles (brasileiro, inclusive), reclamava da falta de espaço na imprensa sobre o tema, ressaltando que, quando havia espaço, era geralmente ocupado pelos extremistas. Por isso cheguei a temer que, nos debates do workshop, o tema da divulgação pública da pesquisa em ciência e religião acabasse ignorado. Felizmente, não foi isso o que aconteceu. Na primeira palestra do dia, Claudia Vanney e Juan Francisco Franck, da Universidade Austral, na Argentina, apresentaram um projeto interessantíssimo sobre determinismo e indeterminismo, e que tem uma forte vertente direcionada ao público geral, com concurso de artigos jornalísticos e produção de livros para o ensino médio (teremos mais no Tubo sobre isso, aguardem). E sempre houve menções esporádicas ao tema da opinião pública durante os debates.
Mas, como era de se esperar, muito do workshop girou mesmo em torno do debate sobre a situação acadêmica (não estou reclamando; era muito natural que fosse assim). Soubemos, por exemplo, que há muitos jovens pesquisadores interessados em pesquisa sobre ciência e religião, mas que acabam não dando continuidade porque as circunstâncias da vida os levam para outros campos em que podem ter uma carreira mais promissora. Ou que ainda há muito preconceito contra pesquisas envolvendo religião, até porque as universidades latino-americanas em geral ainda vivem uma forte influência marxista ou neopositivista. Ou que, em certas universidades, a falta de pessoal leva os professores existentes a assumir uma carga de aulas que lhes tira tempo precioso para pesquisa. Ou que o intercâmbio entre instituições latino-americanas e do mundo desenvolvido nesse campo ainda é muito fraco. Ou que simplesmente faltam boas obras de referência em português e espanhol. Mas também soubemos das boas iniciativas que vêm sendo desenvolvidas no continente, como os eventos trimestrais organizados por um grupo de nove universidades mexicanas (e olhem que o México tem uma história particularmente sensível em relação à religião: apesar da forte religiosidade católica do povo, um laicismo governamental exacerbado levou a perseguição e guerra no início do século passado), e os bons resultados do programa de Oxford, como a possibilidade de incrementar a rede de contatos. Até o professor Eduardo Cruz, da PUC-SP, que já tem quatro décadas de atuação no campo, disse que fez diversos novos contatos graças ao programa.
Se durante a manhã os latino-americanos falaram, à tarde foi a vez de nós ouvirmos. Nas mesas de discussão, norte-americanos e europeus contaram a sua experiência, o que deu certo e o que deu errado em seus países. E vimos que os cenários realmente são muito diferentes. No Reino Unido, a relação sobre ciência e fé é um tema altamente publicizado (imagino que graças aos ateus militantes); nos Estados Unidos, a questão da evolução cria polarizações acirradas em uma escala inimaginável para os padrões latino-americanos. A pesquisa está consolidada em muitos locais, e não é à toa que tanto Cambridge quanto Oxford tenham centros dedicados exclusivamente ao tema.
O segundo dia do evento foi dedicado ao futuro. Se antes tínhamos feito um diagnóstico da situação, agora era hora de traçar estratégias. E, no rodízio das mesas, calhou de os dois únicos jornalistas do evento, a argentina Inés San Martín e eu, estarem no mesmo grupo pela manhã. Não monopolizamos a discussão, mas deixamos claro que achávamos que faltava um impulso da academia em direção à opinião pública. Sabemos que cientistas têm uma visão não muito positiva do jornalismo, sabemos de episódios de distorção, simplificação exagerada e assemelhados, mas o fato é que, enquanto os bons pesquisadores de ciência e fé estão trancados nas universidades e conversando entre si, os extremistas citados pelo pesquisador brasileiro no relatório estão conquistando espaço na mídia, dando entrevistas e escrevendo livros para o público em geral. Na hora da discussão geral, quando citamos esse ponto, Deborah Haarsma, presidente da BioLogos, lembrou a igual necessidade de buscar interagir com os líderes religiosos. Mas a maioria dos participantes, naturalmente, ressaltou mesmo as necessidades do mundo acadêmico: maior facilidade para obter recursos para pesquisa, estratégias para que pesquisadores de fora da região possam passar um bom tempo na América Latina e vice-versa, integração mais profunda entre os estudiosos do tema, mas também abertura para conversar com outras comunidades acadêmicas, como a de filósofos, teólogos, cientistas, historiadores. Artigos sobre ciência e religião, por exemplo, não deveriam ser publicados apenas em revistas dedicadas ao tema, como a Quaerentibus ou a Science and Christian Belief, mas também em revistas de Filosofia, ou de História, ou de Física, enfim, dependendo das disciplinas envolvidas.
A última parte do encontro, na tarde de sábado, foi dedicada a uma questão muito prática: deveríamos ou não criar uma Sociedade Latino-Americana de Ciência e Religião para ajudar a atingir os objetivos listados naquela manhã? Para nos ajudar a pensar no caso, representantes da Sociedade Internacional para Ciência e Religião, da Sociedade Europeia para o Estudo de Ciência e Teologia e da Sociedade de Filósofos Cristãos disseram o que vai bem e o que vai mal em suas respectivas entidades. No fim, a sociedade latino-americana não foi criada, e parece que não o será num futuro próximo. Mas os participantes do workshop concordam que é preciso encontrar maneiras de solidificar os laços criados nos últimos anos para que se possa avançar. Como isso será feito? Minha impressão foi de que a resposta ficou um pouco no ar…
Quanto a mim, aproveitei o evento e as discussões e fiz muitos contatos, com brasileiros e estrangeiros. Aproveitei para divulgar a sondagem que fiz com seminaristas brasileiros e que foi publicada na segunda edição da Quaerentibus, fiz entrevistas ou deixei outras acertadas para o futuro, assim como colaborações em forma de artigos para o blog. Conheci pessoalmente o monsenhor Tomasz Trafny, chefe do departamento vaticano para questões de ciência e religião. E quem sabe teremos uma novidade muito interessante para Curitiba no ano que vem.
Aviso 1: A Fundação John Templeton e a Universidade de Oxford bancaram a viagem e a hospedagem do blogueiro durante o workshop.
Aviso 2: O Instituto Faraday, mencionado neste post, concedeu uma bolsa para o blogueiro fazer um curso sobre ciência e religião em Cambridge em julho de 2011.
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