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Quem conhece o que os papas já disseram ou escreveram sobre a compatibilidade entre catolicismo e evolução tende a pensar que a atitude dos católicos sobre o tema é bem tranquila, ao contrário do que aconteceria em parte do lado evangélico, onde as contestações à evolução são bem maiores. Pois Francisco Javier Novo, professor livre-docente de Genética na Universidade de Navarra, descobriu que não é bem assim. Uma coisa é a postura do Magistério da Igreja e dos pontífices; mas ela nem sempre bate com o sentimento geral dos católicos. Ao longo de anos falando sobre o tema, ele descobriu que muitos católicos aparentemente aceitam a evolução, mas beeeem lá no fundo não a aceitam com todas as suas consequências e implicações – sim, estamos falando da origem do homem, por exemplo. Isso pra não falar de outros que compraram totalmente a cosmovisão naturalista e ateísta em que a evolução é um mecanismo que comprova a ausência de sentido ou propósito no universo, e a rejeição a essa cosmovisão exige necessariamente a rejeição à evolução também.
Foi “para quem tem fé e outros céticos”, portanto, que Novo escreveu A Evolução, que a Editora Quadrante acaba de lançar. Ele não quer apenas explicar por que a evolução é verdadeira; para isso já existem muitos outros livros, alguns deles, aliás, muito bons. Para um cristão, talvez isso devesse bastar – afinal, se cremos que os livros da Escritura e da Natureza têm o mesmo autor, e se cremos que a verdade não contradiz a si mesma, como afirmou Leão XIII na Providentissimus Deus, a avassaladora evidência científica sobre a evolução deveria ser suficiente para que a aceitássemos e a víssemos como a forma escolhida por Deus para criar. Mas na vida real só isso não basta, e por isso o autor pega o leitor pela mão à medida que vai explicando todos os processos evolutivos e vai dando dicas: é nisso que você vai encontrar a “mão de Deus”, não ali nem acolá; Deus não age dessa maneira, mas daquela outra. Enfim, Novo vai desarmando o leitor católico que julgava poder “achar” Deus na natureza de uma forma, e mostra que muitos O estão procurando no lugar errado. Ele está lá, sempre esteve, mas não onde pensávamos que estava.
Para quem já está familiarizado com todos os detalhes biológicos da evolução, o charme dos capítulos centrais do livro está justamente nessas “pistas” sobre onde e como Deus age. E quem não sabia o que é seleção natural, deriva genética, explosão cambriana, como funcionam as mutações e os saltos evolutivos, a ativação de genes HOX etc. etc. vai ficar sabendo, com o bônus de aprender tudo isso ao mesmo tempo em que é guiado pelo autor nessa busca pelas “impressões digitais” divinas na evolução. Perdemos o medo de ver Deus em um processo que é “sujo”, com muitos becos sem saída, mutações que dão errado, destruição em massa, estruturas e seres altamente gambiarrados, enfim, o oposto do que um “designer inteligente” faria.
Francisco Javier Novo descobriu que muitos católicos aparentemente aceitam a evolução, mas beeeem lá no fundo não a aceitam com todas as suas consequências e implicações
É perto do fim do livro que Novo desafia as nossas convicções mais arraigadas, mesmo para os católicos mais adeptos da evolução. Pois é ali que ele argumenta que o surgimento do homem é um processo cujas pegadas já estão perdidas no tempo – e não há como reconstituí-las. E é neste capítulo, sobre a origem do homem, que fica uma sensação esquisita. Não pela descrição dos processos evolutivos que levaram ao Homo sapiens, como o aumento do tamanho do cérebro ou o prolongamento da infância, algo único aos humanos, mas por uma frasezinha: “A pergunta ‘Quem exatamente foi o primeiro ser humano?’ é irrelevante, uma vez que é impossível respondê-la – assim como é impossível precisar o momento em que a criança perde a inocência e se torna maior”. Talvez seja irrelevante para a biologia, mas quem foram e o que fizeram os primeiros humanos é bastante relevante – aliás, é fundamental – para a história da salvação. Falar de evolução para católicos desviando desse tema é deixar trabalho incompleto.
Temo que esse desvio ainda tenha relação com outros trechos do livro bastante desafiadores. No capítulo inicial, por exemplo, Novo ironiza a ideia de um “Deus mago” que “pode tirar qualquer coisa da cartola, ocupado em insuflar vida – ou almas – em certos momentos da história natural” (destaque do autor). Mais adiante, falando da mente humana e citando a definição de “alma” do Catecismo da Igreja Católica como “o princípio espiritual no homem” (n. 363), o autor vai rejeitar a ideia de que “a evolução cria o corpo e Deus, a alma”, classificando-a como “ingênua” e que “não satisfaz a ninguém que leve a sério o ser humano como unidade pessoal”. “Porventura essa dimensão espiritual se equipararia aos fenômenos cognitivos e emocionais que constituem o ser subjetivo de uma pessoa, sua mente? Como Deus teria criado diretamente isso?”, pergunta (novamente, destaque do autor).
Mas aí é que está: se tem algo que a evolução não cria são as realidades espirituais como a alma. E o próprio Catecismo repete a noção tradicional de que as almas são criadas diretamente por Deus (n. 366), e de que a alma é a “forma” do corpo (n. 365). Não vejo nenhum problema com a ideia de que “processos puramente naturais deram forma a esse cérebro especialíssimo, dotado de uma atividade tão sofisticada que é capaz de sustentar o espírito humano”, mas ao mesmo tempo fica uma impressão de que, na intenção (acertadíssima) de mostrar o erro do Deus “intervencionista” do criacionismo e do Design Inteligente, Novo jogou fora o bebê junto com a água do banho e inventou um Deus que só pode agir por meio de causas segundas, ou instrumentais, nunca diretamente. Aí também não.
Menos mal que o livro termina com um capítulo belíssimo sobre o que significa, afinal, esse tal de “acaso” e como o processo evolutivo serve a um propósito, tem um sentido – ainda que não consigamos percebê-lo agora – dado pelo Deus “que está por trás de tudo”, e que age de uma forma infinitamente mais grandiosa que o “Deus com varinha mágica” do famoso discurso do papa Francisco. Pois, no fim das contas, “o acaso existe. Mas só para nós. Para Deus, que é a Causa Primeira da qual tudo sempre depende, não existe azar nem aleatoriedade”.
Esta última citação já não é do livro de Francisco Javier Novo, mas de um outro volume, que complementa A Evolução: é Origen del hombre – Ciencia, filosofia y religión, de Mariano Artigas e Daniel Turbón. Artigas, físico, filósofo e padre falecido em 2006 (o livro é uma publicação póstuma), é “o cara” quando o tema é ciência e fé em língua espanhola, e infelizmente sua monumental produção sobre o tema até agora não recebeu a devida atenção das editoras brasileiras. Turbón lecionou Evolução Humana e Antropologia Física na Universidade de Barcelona.
Como o próprio nome diz, o foco do livro é o surgimento do ser humano, e por isso os processos evolutivos são descritos de forma bem mais sucinta para reservar espaço ao que interessa sem deixar o livro longo demais. Os autores narram as transformações que deram origem aos australopitecos, e depois ao gênero Homo, diferenciando-o do restante dos primatas em termos biológicos e comportamentais; como se percorreu o caminho que vai do Homo erectus até o Homo sapiens, incluindo as linhagens extintas como a dos neandertais; e, por fim, o surgimento do homem moderno e sua dispersão por todos os continentes, analisando as várias hipóteses a esse respeito (a humanidade surgiu na África e se espalhou de lá para o mundo? Ou ela surgiu simultaneamente em vários continentes, a partir de espécies arcaicas locais?). Artigas e Turbón também dedicam algum espaço aos famosos “Adão cromossômico” e “Eva mitocondrial”, explicando o que eles são e o que eles não são. São todos assuntos que Francisco Novo aborda (quando o faz) de maneira bem menos detalhada; então, para quem deseja um panorama completíssimo sobre como funciona a evolução, desde os primeiros organismos até o homem e toda a sua complexidade, a minha recomendação é ler Origen del hombre depois de A Evolução.
Os dois livros também se complementam na maneira de tratar as implicações religiosas da evolução. Novo está mais preocupado em desarmar céticos mostrando ao leitor onde achar Deus nos meandros dos processos evolutivos. Artigas e Turbón se ocupam mais da questão ampla do naturalismo, de como essa concepção “sequestrou” a evolução para seus fins, quais são os limites da ciência (e os da religião), do “evolucionismo” (não evolução) como ideologia... além disso, também explicam com profundidade maior como Deus usa “causas intermediárias” para criar, e como as noções de propósito e acaso se encaixam no grande plano divino para a natureza e o homem.
Onde Artigas e Turbón se distanciam de Novo é exatamente no ponto que me causou um pouco de perplexidade ao ler A Evolução. A dupla de autores parece admitir sem problemas uma ação direta divina ao dotar o homem de uma dimensão espiritual, como neste trecho: “Não há dificuldade alguma em pensar, por exemplo, que durante o processo de hominização Deus tenha previsto que, sempre se se deem as condições materiais necessárias, comecem a existir as dimensões espirituais que tornam possível o nosso ser como pessoas criadas à Sua imagem e capazes de conhecê-Lo e se dirigir-se a Ele. E a existência dessas dimensões espirituais, que são resultado da ação divina, não se choca com as condições materiais, mas, pela vontade divina, está associada a elas” (destaque meu).
É bem verdade que Artigas e Turbón também não se ocupam da questão dos primeiros humanos, monogenismo, poligenismo e pecado original, mas não a tratam como “irrelevante”. Pelo contrário: admitem que existem dificuldades derivadas da ideia de uma população humana inicial de alguns milhares de indivíduos. Ainda que se mostrem mais inclinados à hipótese monogenista, mas sem explicar por quê (apenas citam dois livros de uma mesma autora, Natália Lopez Moratalla), os autores também parecem abertos a uma possível conciliação entre a doutrina tradicional do pecado original e uma origem da humanidade que inclua bem mais de um único casal. Afinal, na Humani Generis, Pio XII não foi extremamente inflexível quanto à impossibilidade do poligenismo; o que ele afirmou é que “não se vê claro” de que forma se daria essa conciliação, ou seja, naquele momento ela parecia impossível, mas nada impede que, mais adiante, teólogos e cientistas encontrem uma fórmula satisfatória.
Quem foram e o que fizeram os primeiros humanos é bastante relevante – aliás, é fundamental – para a história da salvação
Além disso, há um detalhe histórico: na época de Pio XII, a hipótese poligenista mais aceita era a do surgimento independente de primeiras populações humanas em cada continente, cada uma delas evoluindo a partir de formas arcaicas que habitavam as respectivas regiões. Esse modelo realmente é impossível de harmonizar com a doutrina do pecado original. Só depois a tese chamada de “out of Africa” (uma única população inicial humana, surgida na África, deu origem a todo o gênero humano, que se espalhou pelo planeta por meio da migração) se tornou a mais aceita. E com essa possibilidade dá para trabalhar do ponto de vista teológico.
Para o católico que se interessa pelo tema da evolução, minha sugestão é: leia ambos. Aliás, recomendo mesmo para quem não é católico; pois Deus é o mesmo, a evolução funciona da mesma forma, basta descontar as citações aos documentos da Igreja e mais uma ou outra coisinha. Então, se você já sabe como a evolução funciona, mas quer entender melhor como Deus a usa para criar; se você não tem problemas “religiosos” com a evolução, mas quer saber em detalhes como ela funciona; se o seu negócio é saber o que faz do ser humano algo único em todo esse processo; ou se você tem inquietações sobre toda essa conversa de acaso, propósito, necessidade ou contingência, esses dois livros têm aquilo de que você precisa. Talvez ainda o deixem com algum pé atrás em questões bem específicas, mas é impossível não se render ao panorama geral que eles descortinam, de um Deus que cria por amor e com propósito, por meio de mecanismos tão intrincados.