O Tubo de Ensaio publica a íntegra da entrevista que saiu na versão impressa da Gazeta do Povo desta segunda-feira, na página 9 do caderno Vida e Cidadania. O entrevistado é o professor Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador de projetos do Núcleo de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e um dos organizadores do recém-lançado Um diálogo latino-americano: bioética & documento de Aparecida. Biólogo e sociólogo, com doutorado em Oceanografia, Borba esteve em Curitiba na semana passada por ocasião das comemorações dos 75 anos do Studium Theologicum, e me deu uma entrevista muito interessante. Vejam que a resposta mais extensa vai praticamente ao centro de uma das questões que mais nos interessa neste blog: como a religião pode colaborar com a ciência, e por que essa colaboração é necessária.
Qual é a proposta do livro, e por que usar o documento de Aparecida?
Nosso objetivo é fazer uma ponte entre ciência e religião usando a discussão sobre bioética partindo do documento de Aparecida, que é o texto mais recente da Igreja Católica na América Latina; por isso, do ponto de vista católico, é o ponto de partida mais adequado para nossa reflexão. Em relação à bioética, o documento não chega a trazer grandes novidades: ele reafirma a posição católica de defesa da vida, dizendo “não” ao aborto e à eutanásia, mas é importante mostrar que não se trata de uma posição negativa. Os “nãos” são a consequência lógica de um “sim” maior, dado à vida, à beleza e ao amor. É uma postura de acolhida em relação às pessoas que estariam tentadas a uma opção pela morte. A peculiaridade do texto aprovado pelos bispos é que o documento mantém a opção pelos pobres – não se pode falar em bioética na América Latina sem pensar na situação de desigualdade e exclusão social, unida à discussão sobre a crise de sentido trazida pela pós-modernidade.
Há diferenças sobre como a Igreja trata as questões de bioética na América Latina, na Europa ou na América do Norte?
Não há diferenças na forma de engajamento. O que existe de específico na América Latina é uma situação de pobreza extremamente desafiadora. O bispo, num contexto local, se sente muito mais chamado a dar uma resposta que não apenas defenda a vida, mas também responda às dificuldades que as pessoas enfrentam por causa de sua situação social.
Qual é sua avaliação sobre a ação da Igreja nos temas de bioética?
A Igreja no Brasil é muito ativa nos temas polêmicos, mas a mídia criou uma imagem muito reducionista da Igreja nesse aspecto. A participação da CNBB em audiências no Legislativo ou no Judiciário aparece mais que as ações concretas em prol das pessoas. Quem lê jornal fica com a impressão de que a Igreja só sabe condenar as pessoas, mas no dia a dia a grande ação da Igreja se dá, por exemplo, na experiência de acolhida a mães que consideraram o aborto por julgarem não serem capazes de criar o filho, mas com a ajuda da Igreja enfrentaram esse desafio e são felizes com a criança. Em São Paulo temos, por exemplo, o Amparo Maternal, destinado justamente para essas mães. Mais que a discussão sobre a eutanásia, a atividade da Igreja está na conscientização junto às famílias para que aceitem seus idosos, seus pacientes graves, ajudando-os a encontrar um sentido para continuarem vivos. Mas esse tipo de atuação silenciosa, que é a mais extensa, fica perdida.
Quando o Papa veio ao Brasil, fizeram a ele uma pergunta sobre o aborto no México. Bento XVI deu uma resposta muito interessante: a questão do aborto, seja por que motivo for, sempre é uma questão de perda da esperança e da capacidade de ver a beleza da vida. Então, defender a vida significa ser capaz de retomar essa beleza e dar às pessoas uma esperança, um rumo. A atuação da Igreja é muito mais centrada, na verdade, na observação de experiências positivas de recuperar essa beleza e essa esperança. Muita gente pensa que Ratzinger se move usando princípios abstratos para censurar condutas, mas na verdade o que ele faz é o contrário: ele se baseia em experiências positivas da Igreja para propor condutas. Ele é muito mais propositivo que negativo. Se a Igreja defende a vida é porque ela vê continuamente experiências em que as pessoas se realizam muito mais tendo o filho ou convivendo com o idoso do que matando o nascituro ou o doente.
Qual a legitimidade da religião – qualquer uma, não apenas a católica – para dizer o que se pode e o que não se pode fazer em termos de experimentos científicos?
“Legitimidade da religião” não é o melhor termo, pois para mim ele reflete um vício do modo de pensar atual. A questão não e a legitimidade da religião, da ciência, da filosofia ou da política. Eu prefiro falar em “legitimidade das ideias”, seja quais forem. As ideias se definem pelo que têm de verdadeiro e adequado à realidade, e não por quem falou primeiro. Mas as ideias sobre bioética, de modo geral, padecem de um grande problema que chamo de “tecnicismo”, a noção de que a solução técnica resolve todos os problemas e de que o fato de termos a técnica para fazer algo tornaria esse algo permitido, lícito, bom ou recomendável. Suponha que um engenheiro de Fórmula 1 fizesse o carro perfeito, o mais rápido do mundo, e concluísse que não precisaria de um bom piloto – afinal, se o carro é perfeito, o próprio engenheiro poderia dirigir e venceria qualquer corrida. Na primeira curva ele estaria no muro. A técnica em si, por mais aprimorada que seja, não resolve os problemas. Ela tem de ser utilizada com sabedoria. O problema da ciência é que ela não é um conhecimento destinado a gerar sabedoria. A ciência pergunta como as coisas funcionam ou como podem ser modificadas ou utilizadas, mas não pergunta por que ou para que as coisas existem. No entanto, quando tenho de tomar uma decisão humana, não interessa em que campo, essa decisão envolve os porquês. O que eu desejo com isso? Como isso me realiza? As informações dadas pela ciência podem ajudar a responder as perguntas, mas não são a resposta. Historicamente, quem responde melhor esse tipo de pergunta são as religiões. Elas permitem que o homem comum, o que não tem tempo ou capacidade para discutir as grandes questões metafísicas, possa tomar decisões que respondam a essas questões. É a contribuição que a religião trouxe ao mundo.
Na encíclica Caritas in Veritate, Bento XVI diz que a ciência e a técnica não têm por finalidade responder as perguntas sobre o sentido da vida. Então, uma ética que nascesse pura e simplesmente da ciência seria totalmente vã. A ciência precisa dialogar com os campos do saber que se perguntam sobre o sentido: a Filosofia e a Teologia. Dessa discussão é que nasce realmente uma ética adequada. Mas, hoje, essa ética é contrária a muitos mecanismos de dominação na sociedade, então a forma de impedir que essa ética se organize é dizer “vamos deixar tudo na mão da ciência”. Não é só a religião que está em xeque: a filosofia também está. Quase todo bom cientista faz questão de dizer que ele não quer dar regras de conduta para ninguém, apenas descrever a realidade como ela é, do modo mais fiel possível. É evidente que essa explicação e descrição nos ajudam a tomar decisões éticas, mas sozinhas elas não geram ética. Porém, a técnica gera, isso sim, pessoas dóceis à dominação, porque se vende a noção de que, se usarmos a técnica, não precisamos mais nos perguntar sobre o certo e o errado.
Na bioética, quais são os perigos do uso da técnica dissociado da reflexão ética?
Eu vejo possibilidade de problemas no campo da relação do homem com sua sexualidade, porque a grande catástrofe já está dada: a mentalidade segundo a qual se eu posso tecnicamente fazer algo, eu estou automaticamente liberado para fazê-lo. Isso cria um grande problema existencial, principalmente para os jovens. Assim acontecem episódios como o daquele casal norte-americano que recebeu o embrião congelado de outra família. Há quem ache que a ciência destruiu uma certa ética religiosa, mas não seria preciso colocar nenhuma outra no lugar, o que é complicado.
Um argumento muito usado é o de que a Igreja está tentando impor suas convicções a um Estado laico…
Essa crítica só é pertinente se considerarmos que, por muitos anos, a Igreja usou sua influência política para conseguir coisas na sociedade. Mas a própria Igreja viu que isso era contraproducente e abandonou essa prática. Então a crítica atinge um tipo de comportamento que não existe mais, e que nem a própria Igreja considera adequado para ela. Mas hoje se usa esse raciocínio para neutralizar a influência da Igreja no debate. Por que fazer isso, e por que as pessoas, mesmo católicas, acreditam nesse argumento? Porque a sociedade moderna se estruturou em torno de uma crença ilusória sobre a divisão entre público e privado. A sociedade moderna diz que, desde que nos comportemos segundo certas regras na arena pública, podemos fazer o que bem entendermos na esfera privada. Isso é falso porque é impossível pensar em uma liberdade que não coexista com a liberdade do outro, e porque assim se cria um isolamento artificial entre privado e público. Mas, na verdade, dentro de casa eu não posso ignorar o que acontece fora. Só que precisamos fingir que na esfera privada fazemos o que bem entendemos, enquanto as religiões se definem justamente por também dizer a nós o que fazer na nossa vida privada, e nos dar valores para tal. Quando a Igreja faz isso, ela fere esse mecanismo da sociedade atual e se torna incômoda. Vem a necessidade de o poder laico dizer que a Igreja está se metendo onde não é chamada. A sociedade não quer uma discussão sobre o que a realiza, e sim sobre como não atrapalhar o outro. Isso é empobrecedor.
Bento XVI é muito consciente em relação ao papel da Igreja numa sociedade laica e plural – até mais consciente que muitos defensores do Estado laico. O Papa sabe muito bem que a Igreja não tem e não deve ter a autoridade política para determinar coisas na sociedade laica, mas ele também sabe que a Igreja traz a mensagem de uma tradição de 20 séculos, na qual a sociedade ocidental cresceu e se desenvolveu. A civilização ocidental é filha dessa tradição, goste-se ou não, e essa tradição tem algo a dizer. As pessoas não são obrigadas a concordar, mas não podem fazer de conta que essa herança não existe, sob pena de perder suas raízes. Nesse contexto, a Igreja tem sempre a função de propor a sua experiência, sabendo que essas proposições estão sujeitas ao debate racional no Estado democrático. O laicismo exacerbado dos nossos tempos se nega à possibilidade do diálogo racional. Se não existe essa possibilidade, caímos na censura, na postura de que a Igreja não tem o direito de se pronunciar sobre esse assunto, sem saber se o que ela tem a dizer é bom ou não.
Ano passado a encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, que reafirmava a proibição à contracepção artificial, fez 40 anos. Na ocasião, um médico espanhol a classificou como “profética”, em vista de estudos ligando tipos de câncer em mulheres ao uso da pílula. É possível fazer esse avaliação?
Se olharmos com olhos de hoje a pertinência dos postulados da Humanae Vitae, vamos descobrir que praticamente todos esses postulados de alguma forma se confirmaram na vida social. A maioria dos métodos artificiais de contracepção mostrou efeitos colaterais muito grandes e perigosos, enquanto o método natural evoluiu e se tornou cada vez mais eficiente. A própria população mundial está mais sedenta por soluções naturais. Há uma desilusão com a solução técnica que se reflete na busca por todo tipo de terapias alternativas. E, particularmente, a epidemia de aids mostrou que o sexo casual, visto por muitos como o destino das relações afetivas, não deu certo. O problema, que não é da encíclica, foi que nessas quatro décadas a Igreja não soube falar da beleza e do amor, categorias importantes ao homem pós-moderno. Discutiu-se muito a moral e pouco o amor.
Quanto à aids, o Papa causou furor com uma declaração em sua viagem à África…
Ele disse que o uso do preservativo na África não é a solução. De fato, se existe um lugar no mundo onde a camisinha realmente não é a solução, esse lugar é a África. Em geral, trata-se de sociedades muito machistas, em que a mulher é vista como propriedade do homem – se ele tem aids, a mulher tem quase a obrigação de ter também. Além disso, o homem tem o “direito” de satisfazer sua sexualidade onde e quando quiser, com quem quiser. Ele se contamina com facilidade, e passa isso adiante para a esposa. Distribuir preservativos até protege da aids um homem não contaminado, mas é quase uma carta branca para ele continuar a ter o mesmo comportamento promíscuo. Ainda que todos usassem preservativo, o problema da aids estaria resolvido, mas não se teria avançado um milímetro na promoção da mulher. Só que nem todos usam, então a doença se espalha e a mulher continua desvalorizada. A Igreja não quer só o fim da epidemia, ela quer o respeito à mulher e à família. Em Uganda a epidemia começou a ser vencida com uma campanha que colocava a abstinência e a fidelidade em primeiro lugar. Não é à toa que o maior especialista em aids da universidade de Harvard, Edward Green, veio em defesa do Papa dizendo que ele tinha razão.
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