O filósofo e professor Olavo de Carvalho publicou, dias atrás, em sua fan page no Facebook, uma informação curiosíssima. Galileu Galilei, em uma carta de 1641, teria rejeitado o copernicanismo, dizendo que a falsidade do sistema heliocêntrico era inquestionável.
É uma história tremenda, e resolvi pesquisar a respeito. O amigo André Brandalise me enviou link para a tal carta numa edição da correspondência de Galileu. Está aqui, é a carta 4126. Como ela é a resposta à carta 4122, vamos reconstituir o caso na sequência certa. Os links acima para as duas cartas são de uma edição de 1906 das obras de Galileu.
Francesco Rinuccini, amigo de Galileu e defensor do copernicanismo, escreveu ao astrônomo florentino comunicando as observações de uma terceira pessoa, que aparentemente serviam para confirmar o sistema heliocêntrico. Mas Rinuccini também contou que havia lido uma obra com argumentos em defesa do geocentrismo aos quais ele não soube responder, e para isso pedia a ajuda de Galileu.
A resposta de Galileu começa dessa forma surpreendente (a tradução é minha mesmo): “A falsidade do sistema copernicano não pode ser colocada em dúvida de forma alguma, ainda mais por nós, católicos, tendo a autoridade infalível das Sagradas Escrituras, interpretadas pelos maiores mestres em teologia, que em comum acordo nos asseguram a respeito da imobilidade da Terra, situada no centro, e da mobilidade do Sol em volta dela [da Terra]. Assim, as conjecturas pelas quais Copérnico e seus seguidores propõem o contrário se refutam com o solidíssimo argumento baseado na onipotência de Deus, que pode realizar de diversas, até mesmo infinitas, formas aquilo que, a julgar pela nossa opinião e nossas observações, parece feito de uma certa forma em particular. Não devemos encurtar a mão de Deus e insistir em algo sobre o qual podemos estar enganados”. Esse trecho está no livro Galileo was wrong; the Church was right, do geocentrista Robert Sungenis.
É para deixar todo mundo perplexo. Mas então vem a continuação da carta: “E, assim como considero as conjecturas e observações copernicanas insuficientes, ainda mais falsas e errôneas são aquelas de Ptolomeu, Aristóteles e seus seguidores, enquanto, sem fugir dos limites da razão humana, pode-se claramente observar a sua inconclusividade” (o destaque é meu). E, depois disso, Galileu refuta o argumento geocêntrico que Rinuccini havia exposto na carta 4122, mas ao mesmo tempo parece desconsiderar as observações feitas pelo amigo de Rinuccini, alegando que vários fatores, inclusive a falta de precisão dos instrumentos da época, poderiam ter influenciado o resultado. Por fim, Galileu remete ao seu Diálogo, obra na qual fez a defesa do copernicanismo (ainda que, diante da Inquisição, tivesse alegado o contrário). Sungenis omitiu em seu livro todo esse restante da carta, concentrando-se apenas no seu início como prova de que Galileu mudou de ideia no fim da vida. Afinal, o que raios está acontecendo?
Ao tratar desta carta, Sungenis remete ao livro Galileo at work, de Stillman Drake. Com a inestimável ajuda do Tiago Garros, que está em Oxford fazendo pós-graduação, consegui ler o trecho do livro de Drake referente a essa carta: está nas páginas 417 a 419. Antes de transcrever quase toda a carta (deixando de fora apenas as partes não relacionadas à discussão sobre o copernicanismo), Drake reconhece que seu conteúdo vai deixar o leitor boquiaberto. Mas, depois da transcrição, ele esclarece: “De todas as cartas de Galileu que chegaram até nós, apenas nesta seu nome, ao fim, foi apagado com tinta. Suponho que Rinuccini valorizasse e guardasse as cartas de Galileu independentemente de seu conteúdo, mas não queria que outros vissem essa declaração de Galileu segundo a qual o sistema copernicano era falso, para que não pensassem que ele [Galileu] fosse um hipócrita. Mas não há nenhuma hipocrisia quando Galileu diz que toda a ciência, incluindo a astronomia, é uma ficção enquanto estiver além da observação empírica; de fato, a astronomia como Copérnico a formulou não podia ser reconciliada com muitos dos fatos observados e que Galileu conhecia. Ainda mais importante é a afirmação contundente de Galileu de que o tradicional sistema geocêntrico era ainda mais errôneo que o heliocêntrico. Isso era indubitavelmente verdadeiro graças às próprias descobertas de Galileu com o telescópio, e o fato de aqueles mesmos instrumentos astronômicos não poderem estabelecer a paralaxe estelar era verdadeiro não apenas em sua época, mas permaneceu assim por mais dois séculos”.
O problema é que, na carta, Galileu opõe ao copernicanismo um argumento teológico, não científico. E não se trata de um argumento teológico qualquer: o recurso à onipotência divina, lembremos, tinha sido oferecido a Galileu pelo papa Urbano VIII, e o astrônomo o colocou no Diálogo – mas na boca de Simplício, o que não deixou o papa muito feliz. Estaria Galileu aderindo ao argumento que ridicularizou anos antes?
No início do post coloquei links para uma edição de 1906 das cartas de Galileu. Mas o Google Books tem uma outra edição, de 1859 – isso é importante porque Sungenis alega que a tal carta de Galileu permaneceu “escondida” até 1909. Esta edição mais antiga tem um detalhe interessante: antes de cada carta há um curto comentário. E o comentário a essa carta de Galileu diz o seguinte: “Jocosamente no princípio, depois com argumentos afiadíssimos, resolve uma dúvida inserida na alma de Rinuccini contra o sistema copernicano, em resposta à [carta] precedente de 23 de março” (novamente, destaque meu). Ou seja, Galileu estaria, no início, ou tirando um sarro mesmo (o que seria digno de uma página “Galileu zueiro” no Facebook), ou recorrendo àquele modelo de argumentação que consiste, em primeiro lugar, em parecer aceitar o argumento adversário para depois refutá-lo. A nota de pé de página escrita pelo editor, Eugenio Albèri, acrescenta que se tratava de um modo brincalhão para confundir os opositores do copernicanismo e cita a carta de Galileu à grã-duquesa Cristina de Lorena, na qual ele expõe sua “teoria da irrelevância”.
A julgar pelo trecho de Galileo at work, Drake não endossaria nem a tese do “Galileu zueiro”, nem a da exposição prévia do argumento contrário como se parecesse verdadeiro para depois proceder à sua refutação. Mas ele não resolve o fato de Galileu recorrer à teologia, e não à ciência, para justificar a “falsidade” do copernicanismo. E ainda ficam várias perguntas no ar: se o argumento da onipotência divina não foi usado ironicamente na carta, seria essa nova menção algum aceno ao pontífice (Galileu e Urbano VIII tinham um bom relacionamento até a publicação do Diálogo), ou uma tentativa de acalmar algum eventual censor inquisitorial? E, se a intenção foi apenas ironizar, por que Rinuccini apagaria a assinatura de Galileu da carta, como conta Drake? O destinatário não percebeu a ironia? Ou temeu que outros não a percebessem? As cartas seguintes de Rinuccini não pedem a Galileu esclarecimento nenhum sobre o assunto, e até por isso fica difícil chegar a uma conclusão.
De qualquer modo, independentemente das razões de Galileu para escrever o que escreveu – ironia, recurso retórico ou uma verdadeira crítica ao copernicanismo (embora não fique claro o que exatamente Galileu via de errado no sistema copernicano do ponto de vista científico) –, pelo menos uma coisa é certa: o restante da carta parece deixar muito claro que o texto não pode, de modo algum, ser entendido como um endosso ou uma “conversão” ao antigo sistema geocêntrico.
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