“Acredite na ciência”, “confie na ciência”, “ciência, ciência, ciência”. Você e eu ouvimos muito isso nos últimos dois anos. Mas faz sentido? Soube, umas semanas atrás, que o diretor do Observatório Vaticano, o irmão jesuíta Guy Consolmagno, havia escrito um artigo bastante interessante na revista La Civiltà Cattolica, dos jesuítas italianos, exatamente questionando esse tipo de abordagem. Mas, para ler o texto todo e não ficar apenas nos relatos de segunda mão (ainda que vindos de fontes bem confiáveis), tive de comprar a revista impressa, que chegou há pouco tempo. Pois bem, o artigo é realmente sensacional e cheio de ideias que, espero, façam muita gente repensar seus slogans.
O que motiva Consolmagno a escrever é a resistência de algumas comunidades específicas, especialmente os evangélicos norte-americanos, à vacinação contra a Covid-19, e que em parte deriva de um ceticismo mais amplo em relação à ciência como um todo (basta ver, por exemplo, a rejeição à teoria da evolução ou à tese das mudanças climáticas antropogênicas entre esse mesmo público). A tese central de Consolmagno é a de que bordões como “acredite na ciência” são contraproducentes, inclusive por carregarem consigo “uma visão falaciosa do que é a ciência e do que ela pode prometer”. Isso porque ela deixa subentendida uma infalibilidade que a ciência não tem e exige das pessoas uma adesão irrefletida que nem mesmo a fé religiosa pede ao fiel.
“Tratar os cientistas como membros de um tipo de sacerdócio da verdade é tática discutível, especialmente em uma sociedade na qual os verdadeiros sacerdotes são vistos com suspeita”, escreve Consolmagno, acrescentando que “‘confie na ciência’ não propõe apenas a ideia de que a ciência seja um caminho confiável para a verdade, mas sugere que ela seja o único caminho confiável”. É a resposta moderna à pergunta que Pedro fizera a Jesus depois do discurso eucarístico de João 6: “a quem iremos?”. Ora, isso é cientificismo na veia!
Segundo Consolmagno, bordões como “acredite na ciência” deixam subentendida uma infalibilidade que a ciência não tem e exigem das pessoas uma adesão irrefletida que nem mesmo a fé religiosa pede ao fiel
O astrônomo mostra que faz parte da essência da ciência ser um trabalho incompleto e sempre em construção. Muita coisa tida como certa décadas ou séculos atrás se mostrou falsa. “Você só se tornará um cientista quando for capaz de olhar algo que pensava ter entendido, e consiga dizer ‘não está certo’”, escreve Consolmagno. Pior: muitas vezes a ciência foi usada para justificar verdadeiras barbaridades, como a eugenia. E isso também se aplica à medicina (como foi o caso da talidomida) e, mais especificamente, às vacinas contra a Covid. Hoje, afirma Consolmagno, sabemos que elas não impedem a infecção e nem mesmo previnem surtos, embora saibamos também que elas evitam que a doença evolua para formas graves na maioria dos casos; mas também é preciso admitir, diz o jesuíta, que ainda não sabemos tudo sobre seus efeitos colaterais. Embora se defina como um defensor convicto da vacina, Consolmagno também é realista e escreve que “não é impensável que se verifiquem circunstâncias em que os piores temores da comunidade antivacina se tornem realidade”.
Isso me lembra a rapidez com que foi tratado (e descartado) aquele caso da menina que teve taquicardia no interior de São Paulo. Sua anomalia congênita rara foi descoberta rapidamente (mais rapidamente que o resultado de um teste de PCR, aliás) e com isso as autoridades logo afirmaram que havia relação zero entre a vacina e a reação. Mas aí você vê um fio desses, em que uma cardiologista e eletrofisiologista descreve a tal doença com detalhes que certamente você não leu em lugar nenhum na imprensa, e fica se perguntando: o que teria sido mais honesto? Não custava nada terem dito “olha, todo medicamento pode causar efeitos colaterais em algumas pessoas, com a vacina não deve ser diferente, neste caso aqui pode ser uma coincidência ou pode haver alguma relação, vamos investigar mais a fundo, mas lembramos também que não há motivo para pânico, 99,9% das pessoas tomaram a vacina sem reação alguma”. Mas, em vez disso, optaram pelo “já provamos aqui que não tem nada a ver, circulando, galera, não tem nada pra olhar aqui, as vacinas são totalmente seguras, acreditem na ciência”. Qual dessas posturas é mais honesta com a população, e qual alimenta a desconfiança? Não precisa ser gênio para saber.
Isso tudo quer dizer que devemos, então, desconfiar da ciência? Nem de longe, afirma Consolmagno. O que precisamos é saber como ela funciona e entender o seu lugar na sociedade, porque só assim saberemos tratar o conhecimento científico da maneira como ele deve ser tratado. Do contrário, caímos no gnosticismo, a tentação de sermos os únicos detentores de um conhecimento escondido da maioria e que faz de nós as “pessoas mais inteligentes da sala”; e Consolmagno lembra que o gnosticismo pode atacar os dois extremos: tanto o antivacina que abraça alguma teoria da conspiração da internet quanto o cientista que se julga o ápice do intelecto humano – e o jesuíta critica abertamente Stephen Hawking, que era brilhante em seu campo, mas se achava no direito de falar sobre filosofia e metafísica sem entender nada desses temas; e Neil DeGrasse Tyson, outro cientista que “tem opinião sobre quase tudo e sente a irresistível necessidade de compartilhá-la nas mídias sociais, independentemente do quanto ela esteja distante do seu campo de estudo”.
No fim, diz Consolmagno, “a expressão ‘confie na ciência’ não convence os que mais precisam ser convencidos, especialmente se reforça o medo de que a ciência esteja substituindo a autoridade da fé religiosa”. Acho uma pena que em seu artigo ele não tenha tratado da objeção de consciência contra as vacinas atualmente disponíveis devido ao uso das linhagens celulares ilícitas em sua produção ou testagem, mas nem sei se era o caso, na verdade; o que ele quis foi compreender um determinado fenômeno que não tem ligação com as questões bioéticas, e mostrar como o lado “pró-vacina” está lidando mal com essas pessoas, errando com uma abordagem que, sob o pretexto de defender a ciência, acaba lhe fazendo um desserviço ao colocá-la num pedestal que não é o seu lugar verdadeiro.
Agora sim, férias
Quem olha o blog com frequência atrás de atualizações poderia até imaginar que eu tivesse saído de férias sem avisar. Mas não, a inatividade recente foi combinação de um pouco de negligência da minha parte com o período olímpico, em que dei prioridade à outra coluna que mantenho aqui. Mas agora estou mesmo partindo para um descanso, e estarei de volta no fim de março.
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