Não assisti a Ágora, filme lançado no ano passado, dirigido por Alejandro Amenábar e que, no Brasil, parece que nem passou pelos cinemas e acabou lançado direto em DVD. Mas amigos viram e disseram que não passa de um panfleto antirreligioso com pouquíssima precisão histórica. Diz a lenda que, no ano 415, a jovem, bela e inteligente Hipácia, cientista pagã, foi morta por um bando de cristãos por ordem do patriarca Cirilo (depois São Cirilo de Alexandria), devido à sua defesa da ciência contra o cristianismo.
Escrevi “diz a lenda” porque, embora muita gente acredite nessa história, até porque ela é bem conveniente aos “conflitistas” que pregam a total incompatibilidade entre ciência e fé, essa versão da jovem mártir da ciência, executada por uma Igreja que não suportava o pensamento científico, é falsa. O primeiro ensaio de Galileo goes to jail, livro que eu resenhei para a revista Dicta&Contradicta (o texto está aqui), se chama “A ascensão do Cristianismo foi responsável pela queda da ciência antiga” (o nome dos ensaios é sempre o nome do mito que o autor vai derrubar); nele, David Lindberg explica que essa versão da morte de Hipácia data do Iluminismo graças ao irlandês John Toland, e que pesquisas recentes, como a da historiadora tcheca Maria Dzielska, vêm desmentindo aquilo em que se acreditava.
Hipácia, já não tão jovem (na verdade, sexagenária) e já nem tão bonita quanto a Rachel Weisz, teve, sim, uma morte cruel, mas não por causa de sua ciência. Ela teria pago o pato num conflito de poder entre o bispo Cirilo e o prefeito romano Orestes. O prefeito também era cristão, mas o bispo teria usado a amizade de Orestes com a pagã Hipácia para atingi-lo. Na verdade, mesmo esta versão não parece ser a definitiva, pois o historiador grego Sócrates Escolástico, nascido no fim do século 4.º (e portanto contemporâneo de Cirilo e Hipácia), atribui o tumulto que levou à morte de Hipácia não ao patriarca, mas a outros membros da igreja de Alexandria. O sírio Damásio, cujo relato inspirou o panfleto iluminista de Toland, nasceu cerca de 40 anos após a morte de Hipácia.
Mas a coisa não fica só nisso. Ágora foi lançado recentemente nos cinemas norte-americanos, e o pessoal da Skeptic (que não é assim simpático à religião) publicou uma análise escrita por S. James Killings, doutor em História Medieval. Em Hipácia de Alexandria era uma cientista?, ele conclui que Hipácia jamais teria usado o método científico como descrito nas experiências que ela faz no filme; não porque lhe faltasse a capacidade intelectual para tal, mas porque esse método era completamente alheio ao modo de pensar dos antigos. “Como uma platônica do século 4.º, Hipácia provavelmente desconsiderava a observação física e acreditava, como seu mentor Plotino, que ela poderia desvendar os mistérios do universo apenas usando o raciocínio”, diz Killings. “A Hipácia real teria muito mais provavelmente atribuído a queda do saco de grãos ao deus Serápis do que à possibilidade de isso significar que a Terra se move, contradizendo Aristóteles”, continua o professor. Ele conclui que, se Hipácia tivesse de ser “enquadrada” num rótulo científico, seria o de matemática em sentido puro, mas cujos estudos astronômicos teriam se baseado mais na filosofia. Fazer dela uma pioneira do método científico, diz Killings, já é totalmente temerário; e fazer dela uma “mártir” da ciência, acrescento eu, é totalmente falso.
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