Agora já sabemos que amanhã os cardeais começam a votação para escolher um novo papa. Entre os 115 eleitores está um australiano que não parece estar cotado para o cargo, mas que de qualquer maneira faz parte dos meus “top 5”, os meus cinco preferidos entre os que estarão na Capela Sistina. Em abril do ano passado, o arcebispo de Sydney, cardeal George Pell, participou de um debate televisivo de uma hora com Richard Dawkins. Você pode assistir ao vídeo abaixo, ou conferir a transcrição oficial do debate (o site também inclui o vídeo do programa).
O debate mostrou que é possível ter uma discussão civilizada e firme ao mesmo tempo (houve quem comparasse o programa australiano ao debate entre Dawkins e o anglicano Rowan Williams em Oxford, educado até demais). Só fico em dúvida quanto à conveniência da presença do público, que em algumas ocasiões atrapalhou a dinâmica da coisa toda.
Aqui, ressalto apenas alguns pontos da participação de Pell, que deixou claro não haver oposição entre ciência e fé, e inclusive entre catolicismo e evolução (curiosamente, ele parece ter feito uma boa lição de casa ao pesquisar a autobiografia de Darwin, mas escorregou feio ao colocar os neandertais como nossos ancestrais, no que foi corrigido por Dawkins).
Na verdade, o que causou mais polêmica entre meios católicos de língua inglesa foi sua afirmação sobre Adão e Eva. “Certamente não é uma verdade científica, é uma história religiosa contada com uma finalidade religiosa”, afirmou, depois de discorrer um pouco sobre a moral da história, inclusive usando a palavra “mitologia” (mais de uma vez, como se vê na transcrição). Como sabemos, a existência de um primeiro casal, real (se os nomes eram Adão e Eva, João e Maria, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, importa menos) é defendida pela doutrina católica, até porque não se consegue explicar o pecado original de outra forma, e foi uma pena o apresentador ter cortado a discussão justo quando parecia que o cardeal, pressionado por Dawkins, teria que explicar o tema.
Alguns disseram que Pell claramente cruzou a linha que separa a ortodoxia da heterodoxia com seu comentário sobre Adão e Eva. Para outros, ele foi até o limite do aceitável, tendo feito uma escolha cuidadosa de termos; por exemplo, ele escolhe dizer “não é uma verdade científica” para mostrar que a ciência não vai chegar à conclusão sobre um primeiro casal, já que isso envolve a infusão da alma espiritual, mas não diz que “não é uma verdade histórica“, o que, isso sim, seria a negação da existência real do primeiro casal, argumentam os defensores de Pell. Outros, ainda, acham que teria sido desperdício explicar os conceitos todos de forma teologicamente precisa, pois o risco de mal-entendido seria grande, e por isso o cardeal tentou usar uma linguagem mais acessível, ainda que correndo o risco de se queimar com os próprios católicos mais informados sobre a doutrina.
E não podia faltar uma pitada a respeito do “universo surgido do nada” proposto por Lawrence Krauss; ali, Pell claramente mostrou as falhas metafísicas de Krauss, a distorção do conceito de “nada” para que se acomodasse à sua tese, e o próprio Dawkins me parece admitir que o palavreado de Krauss pode não ser o mais adequado. É o que acontece quando se deixa a metafísica de lado.
Depois do debate, Pell foi bastante criticado por seus comentários sobre as mudanças climáticas. Ele não nega que está havendo uma alteração no clima, mas é cético em relação à relevância da participação humana no fenômeno.
De qualquer maneira, acho notável que um cardeal tenha resolvido ir à televisão para debater com um dos maiores expoentes do neoateísmo. Já imaginaram um papa fazendo isso?
E, para completar, temos alguns textos curtos de Pell sobre a relação entre ciência e fé. Um deles faz uma recapitulação histórica e outro, publicado na coluna semanal do cardeal em um jornal australiano. Imagino que alguns verão nesse segundo texto um flerte com o Design Inteligente, mas deixo o julgamento para os leitores.
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