O aniversário é hoje: A origem das espécies faz 150 anos. Por isso, o Tubo publica, na sequência do seu especial Darwin, a entrevista exclusiva que Karl Giberson concedeu, por e-mail, ao blog. Uma versão mais curta foi publicada na edição desta terça no caderno Mundo da Gazeta do Povo. Aqui ela está na íntegra.
Quem visitou o blog ontem descobriu que Karl Giberson é o atual presidente (com a saída de Francis Collins) da Fundação BioLogos, uma entidade sediada nos Estados Unidos que promove a conciliação entre a ciência, especialmente evolucionista, e o cristianismo evangélico. Giberson também é autor de Saving Darwin, o livro que eu resenhei ontem aqui no blog. Claro, falamos um pouco do livro, mas principalmente sobre qual é exatamente o papel de Deus no processo evolucionário e sobre as melhores abordagens na hora de promover a ciência entre pessoas cuja fé é arraigada.
O subtítulo do seu livro é “como ser cristão e acreditar na evolução”. Mas não se “acredita” na evolução como se “acredita” em Deus, em anjos ou em Papai Noel…
Exato, e isso ressalta um aspecto muito importante desta controvérsia: que significado as pessoas pensam ver nas palavras que usamos? Muitas pessoas pensam que “evolução” significa “uma história ateísta sobre as origens”. Se perguntarmos a uma pessoa religiosa se ela acredita em evolução, muitos se sentirão levados a responder “claro que não!”
Mas há dois sentidos de “acreditar” que, para mim, são relevantes aqui. No sentido literal, quer dizer simplesmente “aceitar como verdadeiro”. Todos “acreditam” que dois mais dois são quatro. Esse sentido mais leve poderia se aplicar, penso eu, às pessoas que acreditam em Deus, mas para quem essa crença não tem consequências. Muitos deístas acreditam em Deus como acreditam nas leis da Física – há alguma coisa “lá fora” que existe, mas que efetivamente não significa nada de profundo para eles.
Mas há outro significado de “acreditar” que tem uma carga mais profunda. Minha crença em Deus tem implicações que minha crença na gravidade não tem. Mas eu acrescentaria que minha “crença” na evolução também me afeta em maneiras muito mais pessoais que a mera aceitação da teoria. Ela me leva a refletir sobre como eu me relaciono com os outros seres vivos, como eu me insiro na história natural do universo, como eu devo tratar os animais, o que eu deveria pensar sobre os primatas, e assim por diante. A evolução tem um poder transformador que muda a maneira como uma pessoa se relaciona com o mundo a seu redor – de formas que não se diferem muito da crença em Deus.
Uma pesquisa recente do Pew Forum apontou que 31% dos norte-americanos dizem que o homem e outros seres vivos foram criados exatamente como são, desde o início dos tempos; 32% dizem que eles evoluíram por processos naturais; e outros 22% falam em evolução “guiada por um ser supremo”. Isso é possível, ou o termo esconde visões como o Design Inteligente?
Uma “evolução guiada” é aceita por muitas pessoas, especialmente cristãos com conhecimento científico. Ela aparece sob nomes diversos, como “evolução teísta”, “criacionismo evolucionista”, ou “BioLogos”, o termo que usamos para nosso projeto (e que escolhemos para escapar da bagagem negativa que vem com o termo “evolução”).
Mas a ideia de que Deus guia a evolução é bem complexa. Para ela ser relevante, não podemos simplesmente pegar a versão secular da história e dizer “foi Deus quem fez”. É preciso fazer afirmações teologicamente sólidas sobre o que Deus fez ou está fazendo, e sobre como Ele está envolvido no processo.
Eu diria que nós, no BioLogos, defendemos uma versão limitada dessa “evolução guiada”. Nós acreditamos que ela é guiada no sentido de que o cenário como um todo está cumprindo as intenções do criador, mas, dentro dessa noção ampla, os detalhes incluem vários eventos aleatórios e contingentes.
Permita-me contar uma anedota para me fazer entender: quando ensino evolução a estudantes evangélicos no Eastern Nazarene College, eles normalmente se incomodam com a ideia de que Deus pode trabalhar de forma invisível através das leis naturais. Isso não se parece com o Deus bíblico que fala na sarça ardente, criou Eva tirando uma costela de Adão e fez chover fogo sobre Sodoma e Gomorra. Então eu pergunto aos alunos: “quantos de vocês creem que Deus os guiou até aqui?”, e muitos levantam as mãos. Em seguida pergunto “quantos de vocês foram guiados por meio de interrupções dramáticas e sobrenaturais do curso natural da vida?”, e ninguém levanta a mão.
A conclusão é óbvia: se Deus pode guiar pessoas através dos eventos corriqueiros do dia-a-dia, Ele pode guiar a história natural trabalhando por meio das leis da natureza. E aqui temos uma diferença fundamental em relação às alegações do Design Inteligente: não é necessário que Deus interrompa o curso natural das coisas para, de vez em quando, fazer diretamente parte do trabalho criativo. Em vez disso, temos um Deus que permeia todo o processo.
Além disso, o DI não é exatamente um ponto de vista particular. O saco de gatos deles é tão grande que inclui gente muito diferente: intervencionistas que aceitam a evolução desde que Deus dê as caras de tempos em tempos de forma detectável; criacionistas da Terra jovem; criacionistas da Terra antiga; e até gente que não crê em Deus. O livro de DI mais recente (Signature in the cell, de Stephen Meyer) diz que Deus criou a primeira célula, e daí em diante a seleção natural se encarregou do resto. É um tipo de “deísmo biológico”. O DI não passa de um movimento político em que antievolucionistas concordaram em deixar de lado suas divergências para combater a evolução. O caráter político do DI está se tornando cada vez mais evidente, e há sinais de que o movimento esteja perdendo força.
Mas se o processo evolucionário é movido a competição, seleção natural e mutações genéticas aleatórias, a “atividade criativa de Deus” não tem um papel pequeno demais para um ser todo-poderoso?
No fim das contas, precisamos olhar para a ciência. Parece mesmo que Deus está intervindo de formas dramáticas ao longo da história natural? Nós não podemos colocar Deus numa caixa feita de acordo com nosso interesse e insistir que Suas ações se conformem à nossa ideia de como Deus deveria se comportar.
Eu perguntaria, a quem prefere uma “presença” maior de Deus na história, de que modo eles procuram por Deus no mundo. Essas pessoas buscam um Deus das lacunas, que aparece naquilo que a ciência não explica? Ou buscam por Deus na grandeza de um pôr-do-sol, na nobreza de um voluntário de sopão, ou no sorriso de uma criança? Sem saber, nós aderimos à teologia de um Dawkins quando insistimos que Deus deve funcionar como um engenheiro cujas ações devem ser claramente identificadas pela ciência.
Seu livro relata casos de ridicularização dos criacionistas na mídia, como em episódios dos Simpsons, mas o senhor acredita que essa estratégia não é muito adequada para levar as pessoas a aceitar a evolução. Como, então, levar o público a ver a compatibilidade entre evolução e fé religiosa?
A chave, para a maioria, é desenvolver uma compreensão da Bíblia que vá além do que aprenderam no catecismo ou na escola dominical. O catecismo conta histórias sobre o Gênesis que são adequadas para crianças, mas depois ninguém revisita essas histórias para ajudar os jovens adultos a criar uma visão madura do Gênesis. Descobrir que o livro sagrado tem várias indicações de que não se trata de história literal é uma experiência libertadora para os cristãos. Se nosso primeiro contato com a criação segundo o Gênesis ocorresse na vida adulta, não aceitaríamos tão rapidamente a literalidade das histórias de cobras falantes, jardins mágicos e Deus “descendo do céu” para conversar com Adão e Eva diariamente. Mesmo os nomes dos personagens principais são pistas. A palavra hebraica para Adão significa apenas “homem”, e Eva significa “vida”. Pense numa história em português, ou inglês, sobre um casal chamado Homem e Vida num jardim mágico. Será que não entenderíamos imediatamente que não se trata de registro histórico?
Também é importante – embora não tanto quanto a questão da Escritura – o fato de que existe uma montanha de evidências a favor da evolução. O mapeamento do genoma comprova sem sombra de dúvida que os humanos e outros primatas têm um ancestral comum. Apresentar essa evidência é muito importante para ajudar as pessoas a fazer essa transição.
O que funciona melhor para quem nega a evolução: mostrar a evidência favorável à evolução, apelando para a razão? Ou mostrar que a evolução não prejudica a crença em Deus, apelando para a religiosidade?
É fundamental proteger a religião dos supostos “ataques evolucionistas”. A maioria das pessoas está mais preocupada em estar de acordo com sua religião do que em estar cientificamente atualizadas. O problema no caso dos cristãos evangélicos, infelizmente, é que existem prateleiras sem fim de livros argumentando que a ciência comprova o criacionismo. Para a maioria das pessoas leigas no assunto, a batalha nem é entre ciência e religião, e sim entre “a ciência de que eu gosto” e “a ciência que ataca minha religião”.
No seu livro o senhor parece um tanto pessimista e desiludido sobre o rumo da discussão sobre a evolução, que deixou de ser uma busca pela verdade científica e se tornou uma guerra cultural, onde o que importa é desmoralizar o adversário. Nós realmente chegamos a um ponto sem volta?
Temo que sim. Algumas semanas atrás eu estava em um impressionante museu no Kentucky, mantido pelo Answers in Genesis, o maior e mais eficiente promotor do criacionismo de Terra jovem em todo o mundo. Eles têm uma livraria enorme e, enquanto eu a explorava, era esmagado pelo gigantismo do esforço feito para atacar a evolução. Havia centenas de livros, DVDs, material didático para todas as séries (até pré-escola), canecas, camisetas com mensagens antievolução… Answers in Genesis é uma máquina de propaganda multimilionária, com o propósito de convencer cristãos de que eles não devem acreditar em evolução. Eles têm revistas, um site cheio de informações, workshops, um time de “cientistas”, livros sem fim e muito mais. Tudo isso ruiria se eles se convencessem de que a evolução é real. Por outro lado, eu não consigo imaginar como fundamentalistas científicos como Richard Dawkins e Daniel Dennett fariam as pazes com fundamentalistas religiosos como Ken Ham, o chefe de Answers in Genesis.
Bento XVI, quando era cardeal, pediu que houvesse um debate honesto sobre a legitimidade das afirmações metafísicas feitas em nome da teoria de Darwin. Na sua opinião, cientistas como Dawkins “sequestraram” Darwin como fizeram os eugenistas descritos em seu livro?
Certamente Dawkins e o Novo Ateísmo sequestraram Darwin, e nós deixamos que eles dessem o tom do debate em termos de explicação científica, e não de Metafísica. A ciência leva crédito pelo que pode explicar, e Deus leva crédito pelo resto. Se Deus não é necessário para explicar o que a ciência vai desvendando, Ele não é mais necessário para nada. Nós deixamos um “antiteólogo”, Dawkins, nos dizer o que a Teologia pode ou não fazer.
Apesar de descrever o criacionismo como um fenômeno norte-americano, o senhor alerta que ele está se tornando global. De fato, um dos criacionistas mais famosos do mundo hoje é um muçulmano turco, Harun Yahya. É possível frear a expansão do criacionismo?
Se o criacionismo, profundamente hostil à ciência, conseguiu fincar raízes nos Estados Unidos na mesma década em que pusemos o homem na Lua, é impossível impedir que ele finque raízes num país como a Turquia. O criacionismo tem uma vantagem injusta sobre a ciência: ele continua reciclando qualquer alegação que funcione, ainda que já tenha sido refutada. Isso é tão prevalente que até Answers in Genesis tem uma página em seu site com argumentos antievolução que já foram rebatidos, mas muitos criacionistas não estão nem aí e continuam usando esses mesmos argumentos.
No caso de Harun Yahya nós podemos receber socorro de outra direção. Ele tem sido acusado de ligação com o crime organizado. Se ele fosse para a cadeia, a causa da ciência na Turquia ganharia tanto quanto ganhou nos Estados Unidos quando Kent Hovind (um criacionista da Terra jovem acusado de diversos crimes de ordem fiscal) foi preso.
2009 é o ano de Darwin, pelo bicentenário de seu nascimento e pelos 150 anos de A origem das espécies. Com o ano quase no fim, qual sua avaliação dos esforços feitos para contra-atacar os argumentos criacionistas e promover a conciliação entre religião e evolução?
Esse foi um ano interessante. Por um lado, o Novo Ateísmo dominou a agenda, alinhando-se tanto contra o criacionismo quanto contra a religião em geral. A reação por parte de pensadores religiosos consolidou a polarização, que provavelmente responderá pela parte mais ruidosa do debate nos próximos anos.
Mas, entre esses dois extremos, vozes moderadas se levantaram. Intelectuais agnósticos ou não-religiosos contestaram a posição ateísta de que “a religião é má e deve sumir”. Michael Ruse, Chris Mooney, Eugene Scott e outros afirmam que alienar as pessoas religiosas em nome da ciência só pioraria as coisas para a própria ciência ao alimentar o antievolucionismo. E também – e nisso eu tenho um papel relevante – houve o surgimento da Fundação BioLogos, criada por Francis Collins para incentivar a conciliação entre evolução e cristianismo. Apesar de – ou talvez por causa de – ser uma ponte entre ciência e fé, temos sido criticados pelos dois extremos, enfurecendo todo mundo, de Ken Ham (do Answers in Genesis) e Bill Dembski (do Discovery Institute, promotor do DI) até Sam Harris e Jerry Coyne, dois líderes do Novo Ateísmo.
A experiência do BioLogos tem sido estimulante. Somos a única voz dentro do cristianismo evangélico lutando pela harmonia entre ciência e fé – o que inclui, claro, a aceitação da evolução. Nós esperávamos ser um pequeno e solitário grupo que cresceria com o tempo, mas descobrimos que já existe um número considerável de cristãos, geralmente entre as camadas mais instruídas, que já compartilhavam da nossa posição, mas estavam marginalizados porque não havia quem os representasse em público. Nós estamos emergindo como o Flautista de Hamelin da Ciência, atraindo cristãos e conseguindo enorme apoio. Quase diariamente alguém nos manda um e-mail querendo saber como participar. Isso é encorajador e me faz pensar que talvez haja uma luz no fim deste longo túnel da anticiência.
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Amanhã no Tubo de Ensaio: Darwin matou Deus? Um vídeo para descansarmos um pouco dos textos longos.
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