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Latidos de buldogue
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O naturalista britânico Thomas Henry Huxley se descreveu uma vez como “o buldogue de Darwin”, por sua atuação em defesa da teoria da evolução e de seu formulador. Ele também foi o responsável por cunhar o termo “agnóstico” para designar aqueles que dizem não haver elementos para afirmar ou negar de forma irrefutável a existência de Deus (esse modo de pensar, obviamente, é bem mais antigo; o crédito de Huxley foi ter criado a palavra). Especialmente conhecido por seu debate com o anglicano Samuel Wilberforce em 1860, Huxley escreveu sobre ciência e religião e três de seus textos foram publicados pela Editora Unesp sob o título Escritos sobre ciência e religião (R$ 25). É um livro curtinho, para ler em um dia. Um fio que liga os três textos apresentados é a defesa das ciências naturais, com a qual ninguém pode deixar de concordar. Mas não posso considerar válidas todas as suas conclusões, como a apologia ao cientificismo e a ideia de que a ciência é inimiga do sobrenatural.

Depois de uma breve introdução sobre a vida e as ideias de Huxley, o livro começa com Sobre a conveniência de se aperfeiçoar o conhecimento natural, uma conferência apresentada em 1866. O ano marcava o bicentenário de um grande incêndio que devastou Londres; um ano antes do fogo, a peste havia aterrorizado os londrinos. Huxley compara as atitudes das pessoas diante das duas tragédias: resignação diante da doença, vista como um castigo divino; e revolta com o incêndio, com a procura incessante por culpados. Nos dois séculos seguintes, nenhuma das duas calamidades se repetiu, mas não porque os londrinos estivessem rezando mais ou porque os grupos subversivos tinham sido derrotados, e sim graças ao avanço das ciências, personificado na Royal Society, fundada algumas décadas antes dos dois desastres.

Então, o que faz o mundo avançar é o desenvolvimento da ciência, e não as inutilidades dos escolásticos, diz Huxley; ele critica os detratores da ciência, que, segundo o autor, a veem não como a “verdadeira mãe da humanidade”, mas como uma fada-madrinha cuja única tarefa é propiciar confortos e avanços supérfluos. Para Huxley, o conhecimento natural, ao procurar erigir as leis do bem-estar, foi levado à descoberta de leis de conduta e a estabelecer os fundamentos de uma nova moralidade (p. 44).

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Huxley foi o criador do termo “agnóstico”, para designar quem diz não ser possível provar a existência ou a não existência de Deus.

A seguir, o autor diz que os rudimentos das ciências foram lançados assim que o homem passou a usar sua inteligência para perceber algumas coisas básicas. Da consciência de sua limitação, surgiu o sentimento religioso, afirma Huxley. A busca por inovações tecnológicas (descobrir a melhor época para plantar, ou como trazer água de um lugar para outro) impulsionou o conhecimento científico; astrônomos e biólogos mostraram o lugar da Terra e do homem dentro do universo. A religião também passou por mudanças: se a religião do presente difere da do passado, isso se deve ao fato de que a teologia do presente tornou-se mais científica que a do passado, diz Huxley. Quanto à “nova moralidade”, o autor afirma que ela se baseia na rejeição da submissão à autoridade, na “justificação pela verificação”. Huxley prevê que, à medida que essas ideias se espalharem, a humanidade descobrirá que não há senão um tipo de conhecimento e não mais que um método para adquiri-lo. Estamos diante de uma defesa pura e simples do cientificismo, e aí me vejo obrigado a lembrar a aula que tive com Ian Hutchinson em Cambridge, em julho do ano passado, quando ouvi dele uma refutação ao cientificismo. Também é impossível não lembrar do debate entre Lennox e Dawkins e a famosa pergunta sobre o “comprovação científica” do amor da esposa.

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No filme “Criação”, que conta episódios da vida de Darwin, Thomas Huxley foi interpretado por Toby Jones.

O natural e o sobrenatural é o mais longo dos textos do livro e foi extraído da obra Questões controversas, de 1892. Huxley começa dizendo que o homem assumiu assumiu como certa a existência de um mundo “natural”, sujeito a leis, e um “sobrenatural”, independente dessas leis, com entidades superiores e poderosas; e que, se alguma dessas esferas precisa ser negligenciada por algum motivo, seria a da natureza. Mas esse comportamento, diz Huxley, não compensa, porque o homem sempre lucrou ao dar atenção à natureza, especialmente com o desenvolvimento das artes e das ciências; enquanto isso, a atenção ao sobrenatural levou a um sem número de religiões. Para o autor, existe uma competição entre essas duas realidades, e quanto mais voltamos no tempo, mais percebemos uma preponderância do sobrenatural, que vem minguando e dando espaço ao natural. Se isso indica progresso ou decadência da humanidade, Huxley se abstém de dizer; mas faz questão de mostrar que a diferença existe. A “questão controversa” de seu tempo, afirma, é até onde vai esse processo. O que me parece é que Huxley simplesmente associa “religião” a superstição; concordo plenamente que o avanço da ciência reduz a superstição (essa foi uma das primeiras coisas que apareceram no blog); mas a religião em si não participa de um jogo de soma zero com a ciência, em que um precisa se retrair para que o outro avance.

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O apelido “buldogue de Darwin” foi criado pelo próprio Huxley.

A seguir, Huxley gasta algumas páginas em uma crítica especial ao protestantismo, que, na sua opinião, se propunha a “libertar a razão”, mas não fez mais que substituir os mestres. O autor também aponta as contradições do princípio da Sola Scriptura, afirmando que ele não tem mais sustentação que o da infalibilidade papal (definida pelo Concílio Vaticano I duas décadas antes do texto de Huxley), e contrapõe as atitudes dos primeiros reformadores à de Erasmo de Rotterdam, que o autor considera um “Voltaire ecumênico”. Huxley segue descrevendo uma “insurreição cética” na primeira metade do século 17 e uma reação sobrenaturalista, caracterizada principalmente por uma adesão irrestrita a uma interpretação totalmente literal da Bíblia; Huxley cita não apenas os sermões que ouvia na infância como também uma declaração assinada por 38 clérigos anglicanos em 1891, defendendo a literalidade completa; ele diz acreditar que o documento seja, em parte, uma reação a um avanço do naturalismo dentro do próprio clero anglicano, que já não creem em uma criação em seis dias de 24 horas ou em um dilúvio universal.

Huxley critica, e acertadamente na minha opinião, a associação entre aceitação do sentido literal de toda a Bíblia e fé no sobrenatural, como se a segunda exigisse a primeira; cita santo Agostinho, que tinha sua própria interpretação da criação (e isso é um dos fatores que abala o argumento de “apelo à Antiguidade” dos 38 clérigos anglicanos). Mas Huxley também afirma que “as forças remanescentes de sobrenaturalismo” (todas elas, literalistas ou não) enfrentam “um inimigo cujos poderes apenas começam a se manifestar e cujas forças, ganhando alento ano a ano, cercam-nas por todos os lados”: a ciência, que estaria estendendo seu método às alegações relativas ao mundo sobrenatural. No entanto, Huxley não faz muito mais que alegar que a ciência comprova a impossibilidade de um dilúvio universal e mostra que o processo de surgimento do mundo levou muito mais que seis dias de 24 horas; ora, com isso muitas pessoas religiosas (a maioria, diria eu) concordam, e Huxley parece ver nisso mera manipulação de “reconciliadores modernos”. É verdade que existe o argumento segundo o qual se as afirmações x e y das Escrituras são incorretas, por que as demais não seriam? Argumento que obviamente ignora toda a análise literária dos gêneros usados na Bíblia.

“A fraseologia do sobrenaturalismo pode continuar nos lábios dos homens, mas na prática eles são naturalistas”, alega Huxley, citando exemplos, uns mais esdrúxulos que outros, como se o conhecimento científico atual excluísse totalmente o recurso à oração. Mas ele atesta pelo menos uma limitação da ciência em relação ao sobrenatural: ela não leva à negação da existência de qualquer sobrenatureza, mas simplesmente à negação da validade de evidência aduzida em favor desta ou daquela forma existente de sobrenaturalismo. A ciência não tem como comprovar a inexistência da divindade, e por isso Huxley defende a “confissão agnóstica” como a única posição possível para pessoas que se recusam a dizer que sabem aquilo que estão bem cientes de que não sabem. É certamente uma posição bem diferente do ateísmo que afirma explicitamente e categoricamente não haver Deus.

O terceiro texto, Ciência e cultura, é o que menos tem a ver com o nosso tema: um discurso proferido em 1880, na inauguração de uma faculdade que hoje é parte da Universidade de Birmingham. Huxley faz a defesa do ensino das ciências no ambiente universitário, contra aqueles para quem o ensino superior deveria se dedicar exclusivamente a uma formação clássica (quando muito, incluindo a literatura moderna). Huxley não chega a dizer que os estudos clássicos ou a literatura em inglês, francês ou alemão sejam inúteis, mas que a importância dada a eles, na comparação com a prioridade dada às ciências, é exagerada.

Neste discurso, a religião só entra em cena quando Huxley faz um histórico da educação. Referindo-se ao que parece ser a Alta Idade Média, afirma que nossos ancestrais aprendiam que toda a existência material não seria senão uma grosseira e insignificante mancha na bela face do mundo espiritual, e que a natureza era, para todos os propósitos e para todas as intenções, local de recreio do demônio; aprendiam que a Terra era o centro do universo visível e o homem, o cerne das coisas terrestres; e mais especialmente inculcado era que o curso da natureza não tinha ordem fixa, mas que poderia ser, e constantemente foi, alterado pela agência de inumeráveis seres espirituais, bons e maus, conforme acionados pelos feitos e pelas preces dos homens. (p. 127) Nada mais falso. Algumas frases se aplicam, no máximo, a maniqueus e cátaros; de resto, como lembra Thomas Woods em sua série de vídeos, devemos especialmente ao Cristianismo a noção de um universo ordenado, com leis que podem ser conhecidas e descritas pelo homem. O trecho citado inclusive parece contradizer o que o próprio Huxley disse no discurso de 1866: Duvido que o mais grosseiro dos adoradores de fetiches tenha jamais imaginado que uma pedra contivesse um deus que a fizesse cair, ou que uma fruta contivesse um deus que a levasse a ter um sabor doce. Em relação a questões como essas, não se pode questionar que a humanidade, desde o início, assumiu posições estritamente positivas e científicas (p. 47). O Cristianismo não suprimiu essa percepção; ele a reforçou. Uma pena que, para exaltar a ciência, Huxley tenha resolvido pintar um quadro distorcido dos demais tipos de conhecimento.

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Hoje os cristãos começam a Quaresma, tempo de penitência. Os católicos entre 14 e 59 anos estão, inclusive, obrigados ao jejum nesta quarta-feira: podem fazer uma refeição completa, normalmente o almoço; as outras duas refeições devem ser frugais: somadas, não podem dar uma refeição completa (alguns fazem jejuns mais rigorosos, mas não é a obrigação). Hoje também se faz abstinência de carne. Parece que cientistas descobriram que o sacrifício no estômago é compensado no cérebro.

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