Ontem estava lendo o blog de uma amiga quando encontrei uma acusação que soou no mínimo curiosa: em 1829, pouco antes de sua morte, o Papa Leão XII teria proibido os católicos de tomar a vacina contra a varíola, descoberta havia algumas décadas. O pontífice teria se expressado com os seguintes termos:
Quem quer que recorra à vacina deixa de ser filho de Deus (…) a varíola é um juízo de Deus (…) A vacina é um desafio lançado ao céu.
Para começar, já soa esquisito. Qualquer pessoa familiar com o Evangelho sabe que tentaria muito mais a Deus quem recusasse a vacina (confiando cegamente em um “sem problema, Deus vai me curar/proteger”) do que alguém que buscasse a imunização. Mas temos fatores bem mais concretos para duvidar dessa história.
Humphrey Clark, no blog Quodlibeta, compila algumas fontes com acusações semelhantes, trazendo maior ou menor riqueza de detalhes. Pois é, essa nem o Ronald Numbers tinha visto, pelo jeito, já que poderia muito bem ter entrado no Galileo goes to jail (ou entrou e não estou lembrando). A vantagem, nesse caso, é que estamos falando de um Papa do século 19; assim, seria muito mais fácil achar a fonte primária, o pronunciamento ou encíclica papal que tem essas palavras, sem falar de historiadores da época.
Em 2008, Yves-Marie Bercé e Jean-Claude Otteni, respectivamente da Sorbonne e da Faculdade de Medicina de Estrasburgo, publicaram o paper Pratique de la vaccination antivariolique dans les provinces de l’État pontifical au 19ème siècle. Não leio francês, mas Clark oferece um resuminho. A vacinação contra varíola tinha sido introduzida nos Estados Pontifícios poucos anos depois de sua descoberta. Pio VII (Papa de 1800 a 1823) foi um dos incentivadores da prática. Bem antes disso, Bento XIV (1740-1758) já havia introduzido em Roma o método da variolação para tentar combater a doença. Leão XII se tornou Papa em 1823, e Bercé e Otteni não acharam nenhum indício de que a prática da vacinação houvesse mudado em seu pontificado. Pelo contrário, eles citam relatos de médicos que visitaram a Itália e elogiaram a política sanitária dos Estados Pontifícios. De fato, nenhum historiador da época diz que Leão XII tivesse condenado a vacinação.
Mas ainda temos o recurso à fonte original. Em 1986, o jesuíta Donald Keefe resolveu buscar a origem das acusações contra Leão XII. Keefe soube que um professor havia “citado” a condenação em uma palestra e entrou em contato com ele, pedindo a referência. Como resposta, recebeu um texto escrito por outro jesuíta norte-americano, Richard McCormick, desta vez em 1984. Este trabalho, por sua vez, citava um artigo de Louis Janssens, professor da Universidade de Louvain (Bélgica), em 1980. Este texto usava como fonte para a história de Leão XII um artigo escrito em francês por mais um jesuíta, em 1968. E as citações paravam ali. Keefe, então, procurou o autor do texto de 1968 para pedir mais referências. O padre Abel Jeannière mostrou a Keefe um outro texto seu, também de 1968, que citava uma obra de 1966 escrita por Pierre Simon. E mais uma vez Keefe chegou ao beco sem saída. Ninguém tinha a fonte original da declaração de Leão XII. O jesuíta descreveu sua busca no artigo Tracking the footnote (páginas 6 e 7 do PDF). Keefe escreveu em 1986; Bercé e Ottini, em 2008. Como eu disse, não falo francês, mas é perceptível que os dois médicos mencionam o trabalho de Keefe e conseguem continuá-lo. Pelo que entendi, eles descobriram a fonte do livro de 1966: uma palestra de 1964, feita por um maçom. E dali também não conseguem mais retroceder. Clarke diz que a referência mais antiga que ele encontrou era uma obra de 1880 escrita por G. S. Godkin.
A amiga que citei lá no começo usou como fonte um livro chamado A autoridade da verdade, momentos obscuros do Magistério eclesiástico, de José Ignácio González Faus. Dele só sei que é jesuíta, e parece admirador dos teólogos da libertação. Mas uma coisa salta bem aos olhos quando analisamos essa rede de citações. A maior parte delas tem em comum a época: anos 60 do século passado. E, se olharmos o paper de Keefe, veremos que muitos artigos que mencionam a tal “proibição” (mesmo os mais recentes) têm como tema o controle de natalidade. Não é coincidência: em 1968, Paulo VI publicou a encíclica Humanae Vitae, sobre a contracepção. O assunto vinha sendo debatido dentro da Igreja por anos. A conclusão a que eu chego é que os promotores da lenda sobre Leão XII estavam querendo, na verdade, acertar outro Papa: Paulo VI. Seria algo como “vejam só, se Leão XII estava enganado sobre a vacina, por que Paulo VI não estaria enganado também sobre a contracepção?”. Claro, o argumento cola para quem acredita na lorota sobre a proibição da vacina. Mas, até onde sabemos, a história envolvendo Leão XII não passa disso mesmo: lorota.
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