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Lorota da semana: os cristãos contra a anestesia no parto
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Diz o Gênesis que, depois do pecado original, Deus proferiu uma série de castigos para Adão e Eva por sua desobediência. À primeira mulher, entre outras coisas, Deus disse: “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio” (3,16). Assim, quando no século 19 o médico escocês James Simpson começou a usar a anestesia com éter para aliviar a dor das mães, logo as lideranças cristãs viram na prática uma grave afronta ao comando divino, certo?

Pelo menos é o que pensam alguns, e a última versão do mito foi publicada recentemente pelo jornal espanhol El País. Em uma matéria que um amigo leitor do blog me enviou por e-mail, já traduzida para o português (suponho que tenha saído da área de assinantes do UOL, que reproduz o conteúdo do jornal madrilenho), sobre a discussão em torno da eutanásia na Espanha, o texto afirma, em relação à Igreja Católica, que ela era “contra o parto sem dor porque Deus impôs à mulher a penitência ‘parirás com dor’.”

(é verdade que o El País é um caso crônico de ignorância em relação à Igreja Católica. O jornal não demonstra o mínimo conhecimento da doutrina ou da organização da Igreja, e frequentemente faz afirmações sem base nenhuma. Há casos tão bizarros de distorções de discursos do Papa, por exemplo, que fica difícil saber se é apenas ignorância mesmo.)

Uma pesquisa on-line não traz muitos resultados sobre uma suposta oposição da Igreja Católica à anestesia durante o parto; e ninguém é capaz de trazer uma citação sequer de documentos da Igreja no século 19 se opondo à anestesia. O máximo que apareceu foi – sempre ele – o bom e velho Andrew Dickson White, um dos maiores propagadores de mentiras quando o assunto é ciência e religião. O que existe de fato é um discurso de Pio XII, de 1957, sobre as implicações religiosas e morais da anestesia, em que de forma alguma há oposição a seu uso. O autor do texto do El País poderia até estar pensando neste discurso quando falou de uma suposta “mudança de opinião” da Igreja sobre o tema, mas então ele precisaria encontrar algum discurso ou texto papal semelhante para comprovar que a Igreja Católica algum dia foi contra a anestesia para parturientes…

Reprodução
“O nascimento de Luís XIII”, de Rubens: era para doer muito? Pela cara da mãe, não parece.

Na verdade, a Igreja Católica costuma ser uma coadjuvante neste mito de cristãos sádicos desejando que as mães sofressem dores lancinantes porque “Deus mandou que fosse assim”. A versão mais comum (e igualmente mentirosa) trata de uma oposição feroz dos calvinistas escoceses, já que o uso da anestesia no parto começou em Edimburgo. Sobre isso, Rennie Schoepflin, da Universidade do Estado da Califórnia, escreveu um capítulo em Galileo goes to jail, um livro que vocês já viram citado aqui inúmeras vezes. No texto, vemos que ainda em 1847 James Simpson escreveu um pequeno panfleto com respostas a objeções religiosas ao uso da anestesia, não apenas em partos, mas também em cirurgias. Não consegui a íntegra do texto disponível on-line (o que eu achei é reservado a assinantes de uma publicação acadêmica), mas parece que um dos argumentos era inclusive tirado da Bíblia, fazendo de Deus o primeiro anestesista, já que Ele fez Adão cair em um sono profundo antes de tirar-lhe a costela da qual faria Eva… o texto de Simpson (ele mesmo um cristão devoto, que costumava pregar em púlpitos de igrejas), no entanto, seria mais uma prevenção do que uma resposta propriamente dita a objeções dos presbiterianos. Na verdade, a resposta ao panfleto por parte de líderes religiosos foi positiva. Menos de um ano depois, o próprio Simpson dizia que o pouco de resistência de ordem religiosa à anestesia já não existia.

Segundo Schoepflin, a maior oposição à anestesia no parto veio não dos religiosos, mas dos médicos. Charles Meigs, nos Estados Unidos, foi um dos maiores críticos da prática. Sua argumentação era a de que havia uma ligação natural entre a dor e a força que a mãe devia fazer para dar à luz. Uma de suas preocupações era a de que uma parturiente anestesiada não conseguisse responder a comandos médicos, por exemplo. Mas, como Meigs se expressou com termos do tipo “forças naturais e fisiológicas que a Divindade ordenou que fizéssemos ou sofrêssemos”, sua objeção acabou confundida com um questionamento de ordem religiosa. Em resumo, o que temos aqui é mais um caso de mentira repetida muitas vezes até se tornar verdade, em que novamente se pode traçar a origem do mito a White (ou Draper – sempre um dos dois está envolvido), e sem nenhuma outra fonte primária para comprovar esta ou aquela posição de denominações cristãs sobre o assunto.

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