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Mais “fake history”: o papa que mandou matar os gatos pretos

No afresco de Giulio Romano nos Museus Vaticanos, Gregório IX está aprovando as Decretais, em vez de ordenar o extermínio de todos os gatos da Europa. (Imagem: Reprodução) (Foto: )

Amigos me alertam para a coluna, na Folha de S.Paulo, da jornalista e médica veterinária Sílvia Corrêa. No texto publicado na última sexta-feira, ela trata de um certo gato preto que tem um papel de destaque em uma novela, e a partir daí começa uma retrospectiva histórica da maneira como os gatos pretos eram vistos pela sociedade. Aí sobrou para um papa, Gregório IX. Lembram da história do papa Leão XII, que teria proibido a vacinação nos Estados Pontifícios? Pois Sílvia apresenta um outro capítulo dessas lendas em que papas atrasam a medicina ou facilitam a proliferação de doenças:

“Em 1232, o papa Gregório 9.° levou o besteirol ao extremo, ao incluir os gatos (especialmente os pretos) na lista dos seres hereges, condenando muitos deles a queimar na fogueira da Santa Inquisição. Foi o auge da perseguição a esses animais, que durou séculos.

A loucura coletiva propagada pela Inquisição custou caro: a redução da população felina foi um dos fatores que ajudaram na proliferação dos roedores e, indiretamente, na disseminação da peste negra pela Europa.”

De que raios a jornalista e veterinária está falando? Da bula Vox in Rama, que de fato foi escrita no começo da década de 1230 por Gregório IX. E o que existe de verdade no texto de Sílvia Corrêa termina aí. A bula foi escrita para combater um certo tipo de culto ao demônio que supostamente ocorria em uma cidade alemã; o inquisidor local havia feito um relato ao papa, que decidiu escrever o documento; nele, Gregório descreve os rituais desse suposto culto, e que incluíam um gato preto.

Basicamente, é isso. O texto da bula não contém nenhuma ordem de matança de gatos, nenhuma inclusão de “gatos (especialmente os pretos) na lista dos seres hereges”, era dirigido ao povo de uma cidade específica e foi publicado mais de um século antes do primeiro surto de peste negra ocorrido na Europa.

Pelo jeito, tem “fake history” que se espalha mais rápido que a peste negra… (Imagem: Reprodução)

O pior é que toda essa informação que desmonta a lenda nem é tão difícil de encontrar. Botei no Google “gregory ix black cats” e logo na primeira página vinham algumas tosquices que reafirmam a lenda, botando na pena de Gregório IX o que ele nunca escreveu e fazendo afirmações genéricas sem fonte alguma, mas também textos como o de Alex Johnson no Museum Hack; ele ainda lembra que a peste veio de lugares onde o papa não mandava absolutamente nada, e que a bactéria causadora da peste vive em pulgas cujos hospedeiros nem de longe se limitam aos ratos. Ou, melhor ainda, o longo, mas espetacular texto de Tim O’Neill, do já citado aqui History for Atheists, em que ele trata das “reações religiosas” à peste de forma mais ampla, mas dedica muito espaço à lenda criada em cima de Gregório IX; O’Neill usa, inclusive, a iconografia da época para mostrar que os gatos tinham um status bem favorável entre os cristãos medievais.

As informações estão disponíveis para quem quiser ver, mas sabem como é, não? Às vezes a pessoa leu ou ouviu a história e, como pareceu verossímil, nem procurou checar; às vezes a pessoa, movida por preguiça ou preconceito, conclui que a versão é melhor que o fato; e assim a fake history vai se espalhando…

Pequeno merchan

Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.

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