Com todas as críticas à nomeação de Benedito Aguiar Neto, ex-reitor da Universidade Mackenzie, para a Capes, a Sociedade Brasileira do Design Inteligente (TDI Brasil) publicou, na semana passada, um manifesto em defesa da escolha, tentando dar a impressão de que, no fim, tudo se resume a permitir o debate livre nas universidades sobre “teorias conflitantes”. Mas, nessa tentativa, comete uma série de equívocos sobre os limites da ciência e sobre as implicações não científicas de determinadas teorias – equívocos que, convenhamos, já foram refutados por muita gente, muito tempo atrás.
Deixemos de lado os argumentos de autoridade e ad populum empregados na carta. Afinal, como mostrou o National Center for Science Education, existem mais cientistas chamados Steve defendendo a evolução que cientistas de qualquer nome defendendo o criacionismo ou o Design Inteligente, e eu me pergunto quantos prêmios Nobel estão do lado de Darwin, contra os citados (não de forma nominal) no manifesto. O problema central está neste parágrafo aqui (os destaques são dos autores):
“(...) o Design Inteligente não é religião e não é criacionismo, mas, como toda teoria sobre nossas origens, carrega consigo profundas – e inevitáveis – implicações teológicas e filosóficas. O Design Inteligente aponta para um Criador? Sim, claro que sim! Mas, é daí? Alguém negaria o fato da Evolução darwiniana apontar para um mundo só de matéria e energia, portanto desprovido de Deus? Não rejeitamos também um dia a teoria do Big Bang só por que ela remetia à ideia de um criador, e hoje não a consideramos “um consenso científico”? Implicações são meras consequências, e às vezes as usamos como subterfúgios; o que importa para uma teoria científica são os fatos que a alicerçam, e esses a TDI os tem, e de sobra!”
A afirmação de que há um designer inteligente é tão alheia à ciência biológica quanto considerações sobre a evolução permitir ou não permitir a crença em Deus ou admitir um propósito na natureza
Não é verdade que a evolução aponta para um mundo “desprovido de Deus”; nem mesmo Darwin chegou a afirmar tal coisa, e entre os primeiros promotores da Teoria da Evolução havia gente profundamente religiosa, como Asa Gray, que jamais viu incompatibilidade entre os processos evolutivos e a existência de um criador. O que há, sim, são pessoas que sequestram a ciência da evolução para promover o ateísmo, para afirmar que não existe um Deus, ou que não há propósito na natureza. No máximo, o que a evolução aponta é para um mundo que “se faz” sozinho, sem exigir intervenções sobrenaturais para desemperrar uma engrenagem, mas disso não se conclui inevitavelmente que não há divindade – ela pode muito bem ser a autora dos mecanismos que permitem à natureza seguir seu curso; em outras palavras, a evolução pode perfeitamente ser o modo que Deus escolheu para criar.
E aí chegamos ao Big Bang, no trecho que faz o pobre do padre Georges Lemaître se revirar no túmulo. Afinal, ele passou décadas brigando contra a apropriação religiosa de sua teoria puramente científica do “átomo primordial”, chegando ao ponto de advertir o papa Pio XII quando, em um discurso, o pontífice se referiu ao Big Bang como prova da atividade criadora. Lemaître certamente acreditava no Deus criador, mas jamais diria que seu trabalho “remetia à ideia de um criador”; era uma explicação sobre o início deste universo, não uma tentativa de encaixar o Fiat Lux em um punhado de equações. O que exige um criador é o mero fato de existir algo e não o nada; o Big Bang não tem nada a ver com isso e, se a teoria demorou para se tornar consenso, foi justamente pela resistência de quem viu nela um cavalo de Troia para “validar cientificamente” a criação divina, algo que Lemaître nunca quis fazer.
Tudo isso nos leva à questão das “implicações teológicas e filosóficas”. Vamos discuti-las? Claro que sim, mas no lugar certo. Se queremos tratar de mutações e seleção natural, se queremos analisar esta ou aquela estrutura que os defensores do Design Inteligente dizem não poder ser resultado da evolução, a aula de Biologia é o lugar – no ensino fundamental, no ensino médio, na faculdade, na pós-graduação. Mas quaisquer “implicações teológicas e filosóficas” não pertencem à Biologia, como dá para perceber. A afirmação de que há um designer inteligente é tão alheia à ciência biológica quanto considerações sobre a evolução permitir ou não permitir a crença em Deus ou admitir um propósito na natureza. Todas essas questões são meio que interdisciplinares: partem do conhecimento biológico, mas pertencem ao campo da filosofia ou da teologia (pois são implicações... teológicas e filosóficas, certo?). Qualquer professor de Biologia honesto que seja questionado sobre qualquer desses assuntos irá dizer ao aluno que está saindo do terreno das hard sciences e entrando na metafísica, ou fazendo uma interface entre campos de conhecimento; e muito professor de Filosofia ou Teologia vai adorar orientar um mestrando ou doutorando que trate desses temas.
Todos queremos “debate livre e salutar”, mas sem misturar indevidamente as coisas. Trazer considerações metafísicas para o estudo da Biologia como se ciência fossem é manipular uma discussão muito válida para fazê-la parecer o que não é. Como bem lembrou o Flavio Gordon em sua coluna de quarta-feira passada, a metafísica travestida de biologia não deixa de ser uma rendição ao nefasto cientificismo, como se fosse um demérito admitir que estamos fazendo filosofia e teologia, sendo preciso embasar a crença no designer em “provas científicas”, algo que a velha Teologia Natural do século 19 já tentou fazer, com resultados nada animadores.
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