A notícia do uso de uma técnica de manipulação genética, a Crispr-Cas9, para que bebês humanos fiquem imunes ao vírus HIV alarmou toda a comunidade científica. A pesquisa, feita na China, trouxe de volta a questão do transumanismo, a corrente de pensamento que incentiva melhorias na condição humana com o uso da biotecnologia para, por exemplo, eliminar doenças, retardar o envelhecimento ou eliminar a dor. Existe um episódio de Doctor Who, por exemplo, que se passa em um futuro no qual foram criadas máquinas que ajudam os humanos a dispensar a necessidade de sono (nem preciso dizer que não termina bem; se terminasse, não precisariam chamar o Doutor, certo?).
O transumanismo é um dos temas que fascinam Mariano Asla, o doutor em Filosofia e professor de Antropologia Filosófica e Ética na Faculdade de Ciências Biomédicas da Universidade Austral, na Argentina. Nós conversamos antes do anúncio da pesquisa chinesa (na verdade, bem antes: conversamos no fim do ano passado, em Santiago, mas só agora tive tempo de transcrever a entrevista), mas o alerta que Asla faz é atemporal: ele chama a atenção para a substituição dos critérios com que avaliamos o progresso científico: quase já não se questiona se determinada técnica é moralmente correta ou má; hoje vigora o might makes right (a validade de algo deriva apenas de sua viabilidade técnica) e a absolutização da novidade como critério moral: se é novo, é bom.
De onde vem esse fascínio em que se exalta a novidade pela novidade?
Por trabalhar com filosofia dentro de um curso de Medicina, eu tenho muito contato com pesquisadores. Eles são pessoas que vivem olhando para a frente, têm de descobrir coisas novas, vivem disso. Isso lhes dá uma forma de pensar em que a novidade é quase um pressuposto, um requisito para continuar trabalhando. Essa tendência científica à novidade deriva da ideia de progresso que nos foi herdada do Iluminismo e persiste até hoje. Essa ideia fomenta um tipo de convicção em um poder messiânico da ciência, que vai transformar a espécie humana em algo melhor do que ela é hoje, seja aumentando nossa potência orgânica em simbiose com máquinas, seja alterando a genética. Estamos criando um homem pós-humano, pós-orgânico.
Mas supor que algo seja bom apenas porque é novo é uma atitude muito ingênua, muito infantil. Da mesma forma como é tolice supor que as mudanças são más em si mesmas. Toda mudança tem de ser analisada caso a caso, levantando todas as questões de fundo.
Onde a filosofia entra nisso?
A filosofia nos obriga a fazer perguntas diferentes daquelas feitas pelo cientista; são enfoques diferentes, mais profundos. Primeiro, é preciso levar a sério a própria possibilidade: é realmente viável tecnicamente esse horizonte transumanista? É possível uma existência verdadeiramente humana em um cenário pós-orgânico? Depois, temos de nos questionar se essa perspectiva transumanista é psicologicamente desejável em comparação com o que vivemos hoje, e se ela tem algum tipo de significado positivo. E, por fim, também é importante se perguntar sobre a licitude moral disso tudo. É algo que, às vezes, até pelo entusiasmo e pelo método próprio da ciência, que não é normativista, fica fora das discussões e das análises quando nos vemos diante de muitas coisas que são possíveis tecnicamente, mas nem por isso são necessariamente desejáveis, ou moralmente boas.
E, quando se trata da natureza humana, todos esses níveis de análise precisam estar presentes e se complementar. Fazer essas perguntas não é um “luxo de filósofo”. É algo próprio da vida humana nos perguntarmos como queremos viver, quem queremos ser, em que tipo de mundo queremos morar.
Que riscos se pode observar?
A razão técnica que nos lança adiante nos proporcionou muitos benefícios, mas também é capaz de produzir males terríveis. Nesse sentido, há muitos riscos que esses tipos de projetos podem trazer; em concreto, penso nos riscos da manipulação do genoma humano, que tem dimensões ainda desconhecidas e são riscos qualitativamente diferentes de qualquer outra coisa que já tenhamos visto antes, por sua dimensão planetária e pelo caráter irreversível. Neste caso, com questões tão importantes em jogo, o diálogo entre as disciplinas é indispensável.
O cientista e o homem de negócios, por sua estrutura mental, vivem no futuro, e com uma atitude otimista, que precisam ter, devido à maneira como trabalham. Ninguém pode pesquisar um tema se acredita de antemão que não vai encontrar nada. Mas esse tipo de atitude otimista também tem de ser contrabalançada com uma boa capacidade de análise crítica, e ver que não existe lógica alguma em supor que toda mudança seja boa. Talvez no âmbito da estética isso se veja com maior claridade, pois nem tudo o que é novo representa uma superação das obras e das técnicas passadas.
Pouco mais de 70 anos atrás, em seu livro Uma força medonha, C.S. Lewis imaginou um mundo em que os cientistas tinham poder ilimitado e sem freios éticos, na busca de um “novo ser humano”.
Quando se especula sobre o futuro, é comum projetar essa ambivalência moral humana, essa capacidade que temos de fazer mal. E, quando se multiplicam as possíveis técnicas, os riscos também são maiores. O certo é que, se um processo técnico não vem acompanhado de um suficiente progresso moral, isso é perigosíssimo. O desafio da humanidade é complementar duas formas de racionalidade que são distintas, mas não excludentes: a razão técnica/instrumental/científica e a razão mais sapiencial, filosófica, inclusive teológica. Neste jogo há de se ouvir muitas vozes para que o resultado seja positivo.
Em um mundo em que a técnica está cada vez mais forte, fica mais difícil chamar a atenção para esses temas mais filosóficos ou teológicos?
Nossa posição não é muito fácil, porque a ciência tem a seu favor o fato de oferecer esse “espetáculo de mudanças” inimagináveis, progressos reais, curas espetaculares. É um tipo de conhecimento que se valora de imediato. Por outro lado, a filosofia e a teologia exigem hábitos internos, disposições e expectativas distintas daquelas que são mais comuns no mundo de hoje. Mesmo assim, não temos como escapar delas, porque as decisões existenciais estão lá no mais íntimo do ser humano. Quando alguém escolhe que carreira vai seguir, se constituirá família, se será honesto ou tomará atalhos, todas essas decisões têm a ver com convicções profundas cujas raízes são filosóficas e teológicas.
Daniel Dennett, que é cientista e não crente, diz que não há ciência que não carregue consigo uma bagagem filosófica, consciente ou inconscientemente. Chegou a hora de deixar clara essa linguagem filosófica e discutir essas razões em um diálogo aberto, sincero e respeitoso – é difícil que o diálogo seja respeitoso, mas é o desafio.
Você é mais otimista ou pessimista quanto ao futuro?
Fico um pouco surpreso diante do otimismo muito ingênuo de alguns amigos. Tendo a ser mais cético, alguém diria pessimista. Mas ao mesmo tempo não sou como algumas pessoas que carregam as tintas na negatividade. É impossível não lembrar de tudo de positivo e maravilhoso que o conhecimento nos traz, do poder de desvendar os mistérios da natureza. O momento em que vivemos é de oportunidade imensa, abre-se diante de nós um panorama desconhecido, mas também por isso arriscado. Eu me vejo no meio do turbilhão da consciência do risco que estamos correndo: as coisas podem terminar bem, ou podem terminar mal. Por isso, a atitude mais inteligente é tentar analisar as questões em profundidade.
(Aviso: a Fundação John Templeton e o Centro Ian Ramsey para Ciência e Religião da Universidade de Oxford bancaram a viagem e a hospedagem do jornalista em Santiago)
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